As últimas palavras de Nelson Rodrigues
Em outubro de 1980, dois meses antes de morrer, o autor de Vestido de Noiva concedia entrevista para um jornal em inglês, publicado em São Paulo. O texto permanecia inédito em português.
TOM MURPHY
Fui recebido por um homem pálido, até mais alto do que eu imaginava, de camisa branca e calça azul mal ajustada pelos largos e famosos suspensórios, um homem lento no andar e na fala. Lento de dar pena.
Anos depois, conheci Alfredo Machado, dono e cabeça da Editora Record, a quem relatei a experiência daquele dia. “Entrevistei o Nelson Rodrigues dois meses antes da morte dele; ele já estava doente, muito mal mesmo.” O grande mentor de tantos escritores brasileiros riu: “Nelson estava muito mal sempre.”
Naquele ensolarado outubro de 1980, tive o privilégio de conversar durante uma hora e pouco–sentado, como tantos de seus personagens, diante da simples mesa da cozinha–com Nelson Rodrigues. O cenário era bem Nelson–um apartamento escuro e assombroso na beira da alegre praia carioca do Leme, um cheiro leve, não do mar, mas de desinfetante. Na época, eu trabalhava para o Latin America Daily Post, jornal da língua inglesa que publicou a entrevista dias depois. Foi só em dezembro que eu soube da real dimensão da doença de Nelson, quando ele deu entrada num hospital. No mesmo mês, dia 21, ele morreu, aos 68 anos. Faria 90 anos em 2002 e livros seus são reeditados pela Companhia das Letras, inclusive aqueles que escreveu sob pseudônimo, como a coletânea Não se Pode Amar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo e o romance A Mentira, além das crônicas sobre futebol, esporte pelo qual foi apaixonado. Era Fluminense roxo.
A partir da morte dele, a entrevista, que permanecia inédita em português, virou, para mim, uma grande curiosidade, quase um talismã. Eu fui um dos últimos a falar com Nelson Rodrigues, o famoso e, para tantos, infame e tarado homem das letras—o par de Tennessee Williams e Jean Genet, da dramaturgia brasileira. Já no fim, já enfartado e safenada, mas nada manso, era lúcido e atuante, o maior dramaturgo nacional.
–Qual é sua visão sobre o papel do intelectual no Brasil?
Nelson Rodrigues. Os intelectuais brasileiros não têm nenhuma importância. Há algumas exceções, como o grande sociólogo Gilberto Freyre, mas estes constituem um grupo seleto.
Os escritores brasileiros, pelo menos, conseguem mostrar a realidade brasileira?
Nelson. A cultura brasileira não é uma cultura escrita. O pouco que existe hoje da cultura brasileira é estéril. Não se escrevem romances, poemas e ensaios como antes. E é só assim que o escritor tem possibilidade de tocar nos assuntos mais profundos. O que falta entre os intelectuais brasileiros de hoje é paixão. Não dá nem para ler os jornais. As notícias são velhas! Antigamente, até os jornais eram mais dinâmicos. Um jornal como A Noite saia com as notícias do mesmo dia! E com muito espírito. Do ponto de vista da cultura, o Brasil hoje vive uma fase de transição. Existe uma literatura aguardando para nascer. Vai nascer cedo ou tarde, pelo menos eu espero. A literatura brasileira aguarda um gênio para tirá-lo do tédio. Por enquanto, porém, não há gênio à vista.
Qual sua opinião sobre o intelectual e a política na atualidade brasileira?
Nelson. O intelectual que entra na política não faz nenhum bem para ninguém. Em primeiro lugar, não entende nada da política. Antigamente, a política era uma profissão para pessoas com determinados conhecimentos e hábitos. Era uma dom. Todo mundo virar político é ridículo. Mas, hoje, os intelectuais vão aos comícios. Para que? Para aparecer, tirar foto e vê-la nos jornais. O romancista deve escrever romances e o poeta, poemas. Para o artista, a melhor maneira de servir a pátria é servindo a arte.
Qual é a sua avaliação do Brasil de hoje como sociedade?
Nelson. A verdadeira história do Brasil só vai começar com a chegada em cena de uma grande figura, um Napoleão. Os Estados Unidos tiveram George Washington, a França, Napoleão. Nós tivemos Juscelino Kubitschek, um grande homem, de certa forma, com grandes qualidades, mas quando eu falo de um Napoleão, eu me refiro a algo muito maior do que um Juscelino. A China, por exemplo, teve Mao e Chiang Kai-Shek, homens que correspondiam às necessidades da época.
E o Brasil, hoje?
Nelson. Antigamente, todos eram idiotas e o sabiam. O mundo tinha milhões de idiotas, todos humildes. Muito sabiamente, eles se consideravam idiotas. Mas hoje em dia, quase todas as pessoas se consideram competentes. E não só isso, elas querem o poder! Tanto o querem que eles até fecham as portas na cara dos verdadeiros competentes. Os idiotas querem ser professores, ministros, presidente. O nosso mundo é dominado pelos idiotas. A única maneira de combater essa onda de idiotice é através de um homem com o magnetismo de um Napoleão. O problema do Brasil é o mesmo de todos os países subdesenvolvidos: a falta de auto-estima. Quando um povo não acredita em si mesmo, não acredita em nada. Bom exemplo disso é a mania do povo brasileiro de massacrar a seleção de futebol. Isso me irrita profundamente. É só a seleção errar em uma coisa e todo o País vem em cima. O brasileiro só sabe torcer pela seleção quando ela está ganhando. Quando perde, vem em cima com chicote.
O sr. Disse que o homem competente não tem vez. E o artista brasileiro?
Nelson. Não. Eu, por exemplo, sempre tive de trabalhar como jornalista. Não que eu despreze a profissão. Mas, nos Estados Unidos, um escritor lança um best seller e já pode se aposentar. No Brasil, você ainda tem de trabalhar até o fim da vida. Se eu tivesse escrito tudo nos Estados Unidos que escrevi aqui, eu hoje seria um milionário. Mas, em vez disso, eu ainda tenho de trabalhar para comer.
Eu gostaria que o sr. falasse um pouco sobre censura e o modo como ela afetou sua carreira.
Nelson. Tenho muito a falar sobre censura. Sou autoridade no assunto. Nos últimos 35 anos eu tenho sido o autor brasileiro mais censurado. Censura é uma barbaridade, uma monstruosidade. O único papel legítimo para a censura é classificatório, ou seja, pode somente limitar certas coisas para certas faixas etárias. Não pode limitar, de maneira alguma, a criatividade do artista.
O sr. falou de faixas etárias. A propósito, qual a sua opinião sobre a juventude de hoje?
Nelson. Fui recentemente a um programa de televisão e me perguntaram se eu tinha alguma coisa a dizer aos jovens brasileiros, ao que respondi: ‘Que deixem de ser infantis!’ Somente. Nunca a juventude foi tão pouco generosa, tão pouco heróica, tão pouco humana. Espero que um dia a juventude tenha um grande renascer. É necessário. Os jovens da França praticamente tomaram o poder em 1968. Deram as costas a De Gaulle. Mas, uma vez no controle das universidades, eles não fizeram absolutamente nada. Descobriram que não tinham nada a dizer. Era tudo puro exibicionismo. Afinal, o que tem a dizer um jovem de 17 ou 18 anos? Nada. São os velhos que detém a sabedoria e que podem assumir a liderança. De Gaulle era velho. Mao era velho. Chiang era velho.
Suas peças foram sempre polêmicas. Por que escolheu temas, relacionados ao sexo e à violência, tão controvertidos?
Nelson. Nas minhas obras eu tento transmitir algo que vem de dentro de mim. É trabalho duro. Eu acho que, para escrever bem, o escritor precisa de algumas obsessões, algumas idéias fixas, que sustentam a sua obra. Sem isso, o trabalho vira um caos. Um dos meus temas prediletos é a violência humana. O ser humano é um assassino natural. O ser humano é feroz. É somente isso, uma verdade e, portanto, uma obsessão.
Qual é a avaliação que faz do teatro brasileiro de hoje?
Nelson. Era muito melhor antigamente. Hoje todo autor virou demagogo.
Quais são os seus autores favoritos? Brasileiros e estrangeiros.
Nelson. Meus autores brasileiros prediletos são Gilberto Freyre, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Machado de Assis e Euclides da Cunha. Gosto muito de Dostoiévski. Gosto dele desde jovem. E gosto de Tolstoi. A Rússia tem, ou tinha, uma literatura de boa qualidade. Um pais onde um escritor pode ser internado em um hospital para doentes mentais porque escreveu algo contra o governo não pode ter uma literatura importante. Os Estados Unidos têm um dos maiores dramaturgos do século 20, Eugene O’Neill. Também tem Faulkner e Hemingway. Da França, eu gosto de Gide, Albert Camus e alguns outros. Não suporto Sartre. Ele traiu a condição de escritor quando virou político. Não me entusiasmo muito com Borges. Hoje em dia, eu estou na fase de ler os clássicos de novo. Um livro bom é sempre novo.