Os fatos básicos sobre A Morte e o Enterro de João Coimbra foram entregues para mim por um amigo em um estacionamento em Denver, Colorado, em 1971. A idéia era utilizar a antiga história grega de Antígona, a mulher que enfrenta a sociedade para enterrar o corajoso e discriminado irmão de acordo com os costumes da época, e atualizar a história para o presente. Minha reação imediata foi de ligar a história à doutrina Católica Romana, algo que foi vigorosamente e insensivelmente introjetado em mim por Freiras Dominicanas durante oito anos de escola primária em New Jersey. Anos depois, vivendo no Brasil, não era difícil adaptar a ideia à realidade brasileira e especificamente Paulista, rica em temas como a família, patriarcalismo, uma igreja Católica Romana conservadora, e uma dose de corrupção oficial. Júlio Coimbra pode ser um Creon convincente; Maria Coimbra é uma Antígona passional e cautelosa; o marginalizado Jackson dá um toque cômico e serve como um potente coral Grego. A Morte e o Enterro de João Coimbra é uma peça completa em dois atos para 14 personagens. Segue a primeira cena.
A MORTE E O ENTERRO DE JOÃO COIMBRA
Uma Tragédia Paulista Em Dois Atos
Primeiro Ato
Primeira Cena
A Mansão Coimbra
À Tarde
Cenário: A mansão Coimbra. Uma grande sala de estar com jogo de sofá e cadeiras confortáveis, armários com portas de vidro mostrando os pequenos objetos, livros etc. de uma família tradicional e abastada dos anos 40. Há vários objetos e quadros relacionados a pessoas viajadas e influentes. No primeiro plano há espaço suficiente para pôr uma mesa de jantar. Do lado esquerdo da sala há uma mesa com telefone, uma janela e uma porta que dá para a rua. Do lado direito da sala há um pequeno escritório, com mesa, cadeiras, máquina de escrever, calculadora etc. Há um telefone na mesa. Do lado direito do escritório há uma área reservada para ação fora da mansão Coimbra. A área pode servir tanto como um cenário real quanto como um plano de sonhos e imaginação. Entre o escritório e a sala há um corredor que morre no interior da mansão.
Da rua aproxima-se um jovem, José Kaminsky, da porta principal da mansão Coimbra. A rua e a sala estão à meia luz. Kaminsky está vestido de terno azul, barato. No escritório, dois homens, Júlio Coimbra e José Coimbra de Souza, chamado de “Primo Souza”, estão trabalhando. A luz no escritório é ampla mas suave. O paletó de tom cinza escuro do terno elegante de Coimbra está pendurado num cabide. Ele está de suspensórios e segura uma bengala muito requintada. Souza também está sem paletó. A gravata dele está fora de posição e as mangas estão enroladas. Souza bate as teclas de uma calculadora, que faz um barulho mecânico. Nos fundos escuta-se vagamente a voz de uma mulher rezando o rosário. Na rua, Kaminsky toca a campainha da porta da mansão. Depois, ele toma a pose rígida de um soldado enfilado. A campainha faz um ruído barulhento dentro da mansão. Jackson, o mordomo da família Coimbra, aparece do corredor. Ele é um homem muito correto. Está vestido de uniforme. Enquanto Jackson se aproxima da porta, Maria, a neta de Coimbra, sai do corredor e pára na porta do escritório. Ela está de traje esportivo.
COIMBRA: (Falando para Souza. Exultante) Seremos ricos que nem os Matarazzo… (Souza pára com os cálculos, rasga o papelzinho da máquina e o dá para Coimbra. Coimbra, depois de uma olhada rápida, aponta para o papelzinho e, quase aos gritos, diz) …Que nem mesmo os Matarazzo!
(Enquanto isso, Jackson, na sala, abre a porta principal da mansão. Com dificuldade de enxergar, ele não nota a presença de Kaminsky. Mas, finalmente o enxergando, ele fala em voz baixa com o visitante.)
SOUZA: Mas, já somos ricos.
COIMBRA: Mas não como os Matarazzo…ainda.
MARIA: (Na porta do escritório, sorrindo) Boa tarde, vovô…Boa tarde, Primo Souza.
COIMBRA: (Expansivo) Oh, menina…Onde foi que você andou, hein?
(Maria aproxima-se do avô, que fica sentado. Chegando ao lado dele, ela o beija na testa. Enquanto isso, Souza pega um charuto de uma caixa na mesa do escritório e, com muita cerimônia, se prepara para acendê-lo.)
COIMBRA: Cuidando da renda lá na loja?
MARIA: (Sorrindo, meiga) Sim, senhor.
COIMBRA: (Rindo à toa) Nós também estamos cuidando da renda, não é, Maria? Não é, Souza?
(Souza balança a cabeça.)
MARIA: Eu sei. Não vou perturbá-los mais. Vou buscar a vovó.
(Maria sai, entrando de novo no interior da mansão pelo corredor.)
COIMBRA: Tá bem, menina, vai lá. (Para Souza.) Menina boba, essa Maria. (Rindo à toa) Eu gosto muito de te ver trabalhando, sabia, Souza?
SOUZA: Sei…(Para si mesmo) e como.
(Usando um isqueiro requintado, Souza acende o charuto. Coimbra fica visivelmente irritado.)
COIMBRA: Isso não, rapaz!
SOUZA: Mas pensei que o sr. gostasse.
COIMBRA: Gostar eu gosto, mas essa não é a hora.
SOUZA: Pensei que fosse mais do que hora…já que estamos ‘tão ricos quanto os Matarazzo.’ (Para si mesmo)…ou quase.
(Com certa relutância, Souza apaga o charuto num cinzeiro, mas continua segurando o com a mão.)
COIMBRA: (Veemente) Não é hora enquanto vive o escroque chamado Getúlio Vargas! Ele tira toda a dignidade da coisa. Tudo aquilo que o estadista Churchill dá ao charuto, o gángster Getúlio Vargas tira e joga na sarjeta!
SOUZA: (Para si mesmo) Que desperdício. (para Coimbra) Mas tanto Churchill quanto Getúlio foram derrubados.
COIMBRA: Vargas foi derrubado, Churchill apenas derrotado. Churchill pode voltar ao poder algum dia, mas este energúmeno chamado Getúlio Vargas nunca mais…nunca mais, graças a Deus…Só vamos ouvir de novo o nome Getúlio Vargas quando este crápula morrer! Porém, enquanto vive, é proibido fumar charuto na minha casa, ouviu?
(Souza balança a cabeça.)
(Na sala, Jackson acena para Kaminsky ficar na rua e anda na direção do escritório. Chegando lá, ele aguarda o fim da conversa entre Coimbra e Souza. Depois, ele fala muito corretamente para Coimbra.)
JACKSON: Senhor, há um jovem na porta que deseja falar com o senhor. Ele se diz amigo de um…de um certo membro desta família.
COIMBRA: Amigo da minha neta?
JACKSON: Não, senhor.
COIMBRA: (Pensando) Hmmm…Acho que já entendi. (Ele se levanta com certa dificuldade, veste o paletó e, usando a bengala, caminha na direção da porta do escritório.) Vou deixar a minha regra antiga pra trás. Estou com uma certa tolerância hoje. Pode deixar o jovem entrar, Jackson.
(No escritório, Souza olha para o charuto apagado, ainda na mão dele.)
SOUZA: (Para si mesmo) As vezes um charuto é apenas um charuto.
(Jackson corre para a porta da mansão e acena para Kaminsky entrar. Kaminsky e Coimbra chegam na sala de estar no mesmo instante. No escritório, Souza volta ao trabalho dele. Jackson acende uma luz na sala, que fica tão bem e suavemente iluminada quanto o escritório. Em seguida, Jackson sai da cena pelo corredor. Agora na sala, Kaminsky fica em pé, mantendo a mesma pose rígida de antes. Coimbra, com dificuldade de andar, caminha para uma poltrona, onde ele se senta imperiosamente. De repente, pára o som distante de alguém rezando o rosário.)
COIMBRA: (Estudando o jovem) Qual é mesmo o seu nome, jovem?
KAMINSKY: José, senhor. Eu me chamo de José Kaminsky. Eu sou amigo…eu era amigo do seu…
COIMBRA: Você deve ser amigo do meu ex-neto, não é?
KAMINSKY: (Com certa surpresa) Sim, Senhor Coimbra. Sou amigo do João…Aliás, era amigo dele.
COIMBRA: Posso imaginar. Perfeitamente. Eu era o avô dele.
(Maria e Dona Ana Maria entram na sala de estar pelo corredor. Dona Ana Maria está vestida de forma conservadora em tom sombrio. As duas falam entre si em voz baixa. Elas param, olhando para a cena. Dona Ana Maria em seguida aproxima-se o marido, se sentando numa poltrona ao lado dele. Maria fica em pé, um pouco sem jeito, olhando para Kaminsky.)
MARIA : Vovô, o senhor não vai apresentar o visitante?
COIMBRA: (Em tom um pouco elevado) Não. Não vou, não.
(Souza, no escritório, escuta. Parando com os cálculos, ele desliga a luz, se levanta e caminha na direção da sala.)
COIMBRA: Não vou apresentar o visitante, não. Não vou apresentar ninguém.
MARIA: (Um pouco impaciente) Vovô! (Olhando para Kaminsky) Qual é mesmo o seu nome?
KAMINSKY: José…Cabo José Kaminsky, senhorita.
COIMBRA: Ele se chama na realidade João Ninguém…Sabe por quê? Porque ele é herói de cinema, não sabia? Ele é o fantasma. Tem parentesco com o homem invisível. É isso que ele é aqui dentro da minha casa–o homem que nunca existiu.
MARIA: (Chocada). Vovô!
KAMINSKY: (Em tom sério e até um pouco burocrático, como se falasse com um oficial de alto patente) Bom, Senhor Coimbra, eu não queria causar nenhum constrangimento para o senhor e a sua família. Eu vim apenas para dar uma notícia…mas, eu, então, eu peço desculpas ao senhor…
COIMBRA: (Irritadiço) Desculpas nada! Eu simplesmente não quero falar com você, não percebeu? (Olhando para Maria) E não quero que ninguém da minha família fale com este homem. Vocês entenderam? Está claro para todos? Já chegou a hora de ele ir embora. (Falando com Kaminsky, com falsa cortesia) Com muita gentileza, você vai me entender, jovem…se retirando.
KAMINSKY: Sim, senhor; eu vou me retirar. Eu quero, apenas, é transmitir uma notícia. É só isso. Não quero incomodar ninguém.
COIMBRA: Já incomodou.
KAMINSKY: (Insistente mas muito correto) Eu sei…e peço desculpas novamente, mas eu não vim aqui sem propósito. Eu tenho o meu dever—dever de soldado. Vim para transmitir uma notícia sobre o neto do senhor.
COIMBRA: Mas, não vai transmitir notícia nenhuma. Sabe por quê? Porque eu não tenho neto, entendeu? Logo, ele não existe…e nem você!
(Maria, muito inquieta, se aproxima da avó.)
MARIA: (Para Kaminsky) O que é que tem o João?
(Maria segura a mão da avó, que começa a trabalhar o rosário, murmurando as rezas.)
COIMBRA: Não tem nada. Não existe. É João Ninguém. Por que perguntar, então?
MARIA: Vovô, deixe o rapaz falar, pelo amor de Deus.
SOUZA: (Para Coimbra, muito razoável) É melhor deixar o rapaz falar, não é?…É. É melhor…
(Coimbra se sossega)
SOUZA: (Olhando para Kaminsky, impaciente) O que é que tem? Pode falar.
KAMINSKY: Bom…Eu era amigo de João…
SOUZA: Isso nós já sabemos. E daí?
KAMINSKY: Foi lá na Itália. Fizemos parte da mesma unidade de infantaria, lá no norte. Foi depois de Monte Castello. O pior de tudo é que até lá a guerra tinha acabado, praticamente. Os Italianos já tinham pendurado o corpo de Mussolini naquela poste.
SOUZA: (Impaciente) E daí, rapaz?
MARIA: Primo Souza, deixe o rapaz falar.
KAMINSKY: E daí? E daí, ainda tinham unidades nazistas nas montanhas. Os alemães ainda estavam lutando. Tropas nossas foram atingidas praticamente todas as noites pelos franco-atiradores. Quase todas as unidades foram atingidas. Atingiram os americanos, os ingleses, os próprios italianos e–é claro–os brasileiros. Nossa unidade foi atingida várias vezes. Alguns foram feridos e…o João era um deles.
MARIA: João foi ferido?
KAMINSKY: Foi…e ficou muito tempo num hospital–um hospital dos americanos lá em Roma, com os melhores médicos do exército deles e tudo–mas ele não resistiu.
(As duas mulheres entrelaçam as mãos. Dona Ana Maria enterra o rosto na mão livre e começa a chorar, mas de forma muito discreta, quase silenciosamente. Souza e Coimbra não mudam de expressão. Jackson entra discretamente pelo corredor.)
KAMINSKY: (Um pouco menos rígido) Eu era muito amigo de João. A gente cuidava um do outro. Éramos como irmãos. (Voltando um pouco ao tom burocrático) O exército mandou o corpo dele de volta para São Paulo. E eles me pediram para falar com a família, já que eu era o melhor amigo dele. Eu achei que vocês iam querer que o corpo dele fosse para uma igreja…mas eu não sabia qual igreja…Não sou católico…
COIMBRA: Igreja nenhuma.
KAMINSKY: Eu estou ao seu inteiro dispor. Farei qualquer coisa que me pedirem.
COIMBRA: Neste caso, você simplesmente irá embora, nos deixando em paz.
KAMINSKY: (Ainda muito correto) Bom…Se o senhor me desse o nome de uma igreja, ou de um padre, eu poderia cuidar do resto…(em voz baixa, triste) e deixar o senhor em paz.
COIMBRA: Eu já lhe disse, igreja nenhuma, padre nenhum. Eu mandei que você fosse embora da minha casa. Agora, vá! Faça o que eu mando! Eu sou ainda a cabeça desta família. Não morri ainda. Eu estou acostumado a ser obedecido dentro da minha própria casa. Vá embora daqui! Entendeu? Vá embora!
(Coimbra aponta com a bengala na direção da porta, mas Kaminsky–bom soldado que é–adota a pose de quem não pretende desistir. Coimbra fala de novo com falsa cortesia.)
COIMBRA: Jackson, tenha a gentileza de acompanhar este jovem—bom soldado e amigo fiel que é–até a porta. Não que ele já não conheça o caminho. Ele teve a ousadia de chegar aqui, e agora ele vai ter a inteligência de retirar-se…pelo mesmo caminho.
JACKSON: (Se aproximando de Kaminsky) Sim, senhor.
MARIA: Espere, vovô!
(Maria se aproxima do avô. Jackson vira primeiro para Maria e depois para Coimbra, como se buscasse uma segunda ordem. Coimbra se levanta e, apontando para Kaminsky, começa a falar “Vá! Vá!” mas antes de falar mais Souza o impede, botando a mão no ombro. Coimbra, não muito conformado, senta-se de novo.)
SOUZA: (Para Coimbra, muito razoável) Espere um pouco, Coimbra, espere.
(Coimbra, em silêncio profundo, ouve Maria)
MARIA: (Apelando, mas falando quase que intimamente com Coimbra) Vovô, ele quer nos ajudar. O senhor não ouviu? O João queria que o amigo dele achasse uma igreja, um padre para que ele pudesse–não sei dizer–para que ele pudesse morrer em paz. Foi uma espécie de confissão de fé, não foi? Devia ter sido assim. (Coimbra fica sem expressão, recusando o olhar da neta) Vovô! Vovô!
(Maria pega as mãos do avô. Souza faz um sinal para ela parar. Ela pára, colocando a cabeça perto do avô. Depois de uma pausa, Souza fala.)
SOUZA: (Para Kaminsky, em tom exigente) Qual é mesmo o seu nome?
KAMINSKY: José Kaminsky, senhor.
SOUZA: Que espécie de nome é?
KAMINSKY: Polonês, senhor.
SOUZA: Polonês…Quer dizer, judeu, não é?
KAMINSKY: A minha família é judia, sim.
COIMBRA: (Em voz baixa) Judeu, eu sabia…ainda tem essa.
SOUZA: Você é praticante?
KAMINSKY: Não, senhor.
COIMBRA: Pior ainda. Nascido idiota e não tem o pudor nem de assumir a idiotice. (Apontando a bengala) Você, meu jovem, nasceu pecador, mas nem assume o pecado.
(Maria, aparentemente exausta, se levanta do lado do avô e anda até os fundos da sala.)
SOUZA: (Olhando para Kaminsky, fala em tom insinuante) O meu Primo João–o seu “estimado” companheiro nas armas–escreveu sobre você nas cartas, sabia?
COIMBRA: Cartas? Quais cartas? Eu não vi carta nenhuma dele.
MARIA: (Calma) Ele escrevia para mim, vovô.
COIMBRA: E você ousou responder?
(Maria abaixa a cabeça sem dizer nada. Souza coloca de novo a mão no ombro de Coimbra para acalmá-lo.)
SOUZA: (Para Kaminsky) Meu primo disse que você e ele eram amigos, sim. Ele disse que você era muito amigo mesmo. Ele tinha muito respeito por você; aliás, ele considerou você muito corajoso. Ele escreveu uma vez, inclusive, que você lutou na Intentona de ‘35. É verdade?
KAMINSKY: (Ainda mantendo a pose do bom soldado, mas falando com um toque de ironia) João, às vezes, exagerava as coisas.
COIMBRA: (Para si mesmo) Bom, pelo menos uma luz…
SOUZA: (Para Coimbra, ironicamente) Só que lutava pelo lado errado, não é, Coimbra?
COIMBRA: (Olhando para Souza e depois para Kaminsky) O quê? Lutou ao lado dos comunistas? É você, então! (Apontando com o dedo) Você é aquele que fez a cabeça do meu neto, meu único neto homem, e você conseguiu, hein! Você causou toda essa desgraça para nós, toda essa desgraça para a família Coimbra. Você é um cachorro, pior do que um cachorro. (Ele se levanta enquanto Dona Ana Maria e Souza tentam segurá-lo. Ele fica meio sentado e meio em pé, apontando a bengala.) Você é a merda de um cachorro, a tripa de um cachorro!
(Dona Ana Maria retira a mão do ombro do marido. Com uma mão, ela cobre a boca, chocada, e com a outra ela trabalha o rosário, murmurando “Oh, meu Deus, Oh, meu Deus.” Kaminsky começa a perder um pouco a pose, se apoiando com as duas mãos numa poltrona. Ele tenta falar mas Coimbra ganha fôlego e começa a falar primeiro.)
COIMBRA: Você é judeu…e comunista, como aquele homenzinho que parece rato, aquele que eles mataram lá no México, aquele…qual foi mesmo o nome dele?
SOUZA: Trotsky, Leon Trotsky.
COIMBRA: É…Totsky…Leo Totsky, aquele que eles mataram com um machado na nuca–golpe bem aplicado–lá no México. Quebraram mesmo a cabeça do homem. Bonito aquele lance, não foi? É isso que eu chamo de fazer a cabeça. (Ele ri à toa) Ele era muito parecido com aquele Ziembinsky, aquele que é o dono da confeitaria, que tá sempre mastigando charuto sem fumá-lo e cobrando um tostão a mais dos fregueses, um homem completamente indigesto. Polonês, por sinal. Não vai ter igreja, nem padre, meu jovem. Não vai ter enterro nenhum. Como é que pode? Como é que você pode enterrar um homem não cristão num cemitério dos cristãos? Comunista não pode ser cristão. Nunca! Isso não é claro? Comunista não pode ser enterrado no cemitério dos cristãos. E é você que fez dele um comunista nojento. Você o fez virar as costas para a Igreja e a família. Agora, quanto ao corpo…Você quer saber do corpo, não é? Eu te digo. O corpo é todo seu. Faça com ele o que quiser e vá com ele para o inferno. Entendeu?
KAMINSKY: (Perdendo a pose do bom soldado e reagindo de forma agressiva e contundente) Entendi. Entendi, sim, senhor. Só não entendi uma parte, a parte que diz assim–‘como é que pode.’ E digo mais. Eu tenho o meu próprio ‘como é que pode.´ É assim: Como é que pode uma família ignorar o suor e o sacrifício do seu próprio filho? Como é que pode enterrar o sangue, o sofrimento e a morte? Como é que pode deixar de chorar os seus mortos? Agora, o senhor vai me entender! Eu já chorei! Já chorei muito! Deixei o meu sangue e as minhas lagrimas lá na Itália, uma boa parte da minha alma. Dá pra entender?
COIMBRA: Você é judeu e não tem alma.
KAMINSKY: E o senhor tem?
(Coimbra olha passivamente o soldado)
KAMINSKY: (Olhando para a Dona Ana Maria.) E a senhora?
DONA ANA MARIA: (Recua, trabalha sem parar as pedras do rosário) Oh, meu Deus. Falar essas coisas não pode, não. Nós somos uma família católica de muito respeito. Nós somos uma família que já deu padres e freiras à Igreja. Eu que quase entrei no convento…e Maria também.
MARIA: (Sinalizando para Kaminsky dar um tempo, ela se aproxima ao avô, falando quase intimamente com ele. Kaminsky vira as costas, andando um pouco pra lá e pra cá para se acalmar) Vovô, talvez possamos falar com Padre Paulo…ou com o bispo…Podemos explicar a eles que o João era…que ele era muito jovem, que ele morreu na guerra, que…
COIMBRA: Que nada. Que morreu com a alma cheia de pecado. Rejeitou a Igreja. Rejeitou Deus. Rejeitou a família. Ele nos rejeitou. Você vai ter que dizer isso também ao bispo, não sabe?
(Dona Ana Maria começa a chorar de novo, enterrando o rosto nas mãos para abafar os soluços.)
SOUZA: (Muito razoável) Coimbra, Maria tem razão. Podemos falar com Padre Paulo, ou melhor, com Dom João Augusto. Dom João é muito amigo meu, inclusive. Talvez a igreja não seja tão rígida assim, quem sabe. Acho que vale a pena falar com ele. Vou ligar agora mesmo para o Dom João. Vou convidá-lo para jantar conosco hoje à noite. Vai ser agradável. Vai dar pra acalmar todo mundo. (Falando para si mesmo) Sei que Dom João não estará ocupado. Ele não faz nada mesmo.
(Souza retira-se, anda para o escritório, onde ele pega o telefone e disca. O escritório fica à meia luz. Dona Ana Maria aproxima-se do marido, segurando a mão dele, mas ele não reage.)
COIMBRA: (Para se mesmo) Dom João Augusto…idiota…gago…
nem sabe distinguir entre a narina e o próprio cu. Imagine na hora de limpar o nariz. Pelo menos teve o bom senso de se tornar sacerdote.
(Maria anda na direção de Kaminsky, parando na poltrona do avô, onde ela faz um carinho nele antes de chegar ao lado do jovem ex-combatente. Ela fala baixo com Kaminsky e os dois andam juntos até a porta.)
COIMBRA: (Para Kaminsky, levantando a voz) Não vai ter enterro nenhum. Esse corpo não vai entrar dentro de igreja nenhuma. Você perdeu o seu tempo, soldado. Vá embora! Vá embora daqui! E jamais volte! Não quero que você volte nunca mais!
(Com dificuldade, Coimbra se levanta e, segurando a bengala, caminha para o corredor. Dona Ana Maria e Jackson o seguem. Souza, no escritório, continua no telefone, de vez em quando falando “sim,” “sem dúvida” e outras frases em tom baixo. As luzes baixam-se no resto da sala enquanto Maria e Kaminsky conversam, ela em pé na porta ao lado da mesa de telefone e ele já na rua.)
MARIA: (Calma. Durante a primeira parte da fala, ela pega um papel e uma caneta da mesa de telefone e escreve alguma coisa rapidamente.) Favor, eu peço desculpas para a minha família. Nós vamos dar um jeito nisso. Tenho certeza. Meu avô é muito teimoso. Ele e o meu irmão, há tempos atrás, eles não se deram bem, mas isso já passou…eu acho. (Em tom mais íntimo) Eu adorava o meu irmão, sabe. Sei que a vovó também o amava muito…O vovô também…do seu jeito…Vovô também amava João…(Ela procura as palavras mas elas não vêm)
KAMINSKY: (Firme, olhando para Maria) Eu também gostava muito dele.
MARIA: Eu sei. (Ao se retirar, ela passa o pedaço de papel para Kaminsky) Vamos dar um jeito. Vamos falar com o bispo, ainda hoje. Ligue para mim, ligue…tá bom?
KAMINSKY: Ligo sim. (Ele olha o pedaço de papel, percebendo que se trata do número de telefone dela. Ele se retira, mas de repente dá uma volta) Ó meu Deus do céu, eu quase esqueci!
MARIA: O que que tem?
KAMINSKY: Senhorita Maria, só tem um problema…o caixão…está na ferroviária lá no Bom Retiro e não posso deixá-lo ali, e também não tenho onde deixar. Eu ia mandá-lo para a igreja, mas que igreja? Eu acho que agora não vai ser possível, pelo menos por enquanto. O que é que eu faço?
MARIA: (Desesperada) Meu Deus do céu, meu Bom Jesus! (Ela olha para todos os lados como se estivesse procurando a solução em algum lugar perto.) Bom. (Em tom decisivo) Acho que você vai ter que deixá-lo aqui. Por enquanto. Não há outra opção. Aqui mesmo. Traga-o pra cá. (Ele inclina a cabeça, concordando. Ela fecha a porta mas de repente, olhando para ele, Maria fala para Kaminsky) Obrigada, viu?
(Kaminsky sai do palco às pressas. Maria o observa enquanto Souza termina a conversa no telefone e sai do escritório. Souza se aproxima de Maria.)
MARIA: (Virando para Souza. Calma) Oh, Primo Souza…Obrigada, viu…Sei que posso contar contigo.
SOUZA: (Sério) Não pode, não. Não pode contar comigo, não, Maria. Você não pode contar com ninguém.
MARIA: (Surpreendida, um pouco assustada) Mas você me apoiou. Você tomou o meu partido, não foi? Ou foi mentira?
SOUZA: (Frio) E daí? Tomar partido foi fácil. Não custou nada. Maria, não mexa com isso. Não tem sentido. Você só vai se machucar. E pra quê? Você vai perder; fatalmente, você vai perder. Deixe tudo comigo, tá bom? Olhe, eu também gostei do João. Claro que gostei. Mas agora ele não está mais conosco. Então, não adianta entrar nesta briga. Deixe o exército cuidar de tudo. O João é um dos mortos honrados agora. É herói. Eu posso dar um jeito, acionar os pistolões, e ele vai ser enterrado, quem sabe, no Túmulo do Soldado Desconhecido, com muita dignidade (Ela recua). Pode ser. Por que não? O presidente vai deixar flores lá no túmulo dele todo ano. Todo mundo vai achar que se trata de um soldado desconhecido, mas só nós vamos saber quem é. Não é digno? Alguém tem que ser o soldado desconhecido, não é? Não é um enterro digno?
MARIA: (Quase chorando) Não. Não é. Não é digno, não. João era um homem. Ele tinha nome. João Coimbra era o nome dele. Já esqueceu? João era o meu irmão. Você não pode simplesmente jogá-lo num túmulo e esquecê-lo. Ele era o meu irmão! Eu o amava! Meu Deus, era o meu irmão! Você não liga? Não faz a menor diferença para você? Você não acha que todo homem tem direito de ser lembrado pelo menos pela própria família? Meu Deus, você está querendo matá-lo de novo!
SOUZA: (Tentando acalmá-la, pegando-a nos ombros) Maria…Maria…Maria…Não se meta nisso.
(Maria escapa do abraço dele.)
Maria: Mas eu vou me meter, sim.
(Apagam-se as luzes de forma repentina.)
–Fim da primeira cena-
Photo credit: Soldiers and Sailors Monument, Rio de Janeiro (Fernando Dallaqua)