Sumaré começa com um crime misterioso e sujo e acaba com um crime monstruoso e público. Abaixo da superfície acontecem milhares de crimes pessoais de traição, indiferença e corrupção. Os “pequenos crimes” do ambicioso Arno Ribamar Coimbra contrastam com os crimes sistêmicos de corrupção e ditadura no Brasil de 1964. Uma tragédia tipicamente carioca, os habitantes do ambiente luxuoso de Sumaré confundem status com poder e sexo com amor. Sumaré é uma peça de teatro completa em dois atos para nove personagens. Segue a primeira cena.
SUMARÉ
Uma Tragédia Carioca Em Dois Atos
Primeiro Ato
Primeira Cena
A mansão Coimbra no bairro de Sumaré, cidade do Rio de Janeiro
1 de Janeiro, 1964, à tarde
Cenário: A mansão Coimbra no bairro nobre e isolado de Sumaré na cidade do Rio de Janeiro. No centro do palco há uma grande sala de estar com aquela mobília simples e reta considerada, na época, “moderna”. A sala tem um aspecto austero e temporário, como se fosse um apartamento de hotel, com poucos objetos artesanais ou pessoais. Faltam antiguidades e retratos de familiares. O único destaque são alguns quadros nas paredes. Estes são ultramodernos–traços, linhas, e blocos de cores sem nenhuma referência óbvia a figuras humanas ou objetos reconhecíveis. No centro da sala há um jogo de sofá e cadeiras, no canto esquerdo um corredor que dá acesso ao vasto interior da mansão. Do lado esquerdo da sala, embaixo de um quadro de cores gritantes, há um carrinho de vidro e alumínio cheio de garrafas e copos. À direita da sala, há uma porta que dá acesso à rua e à cidade com todas as suas tentações, dilemas e soluções. Essa área externa será também reservada para ação fora do bairro de Sumaré. Do lado esquerdo da sala há um escritório, com mesa, cadeiras, telefone etc. Uma porta liga a sala a este local de trabalho, o terreno quase sagrado do Senador Arno Ribamar de Coimbra. A mobília do escritório é mais convencional do que a da sala, com cadeiras confortáveis de couro e estantes de livros. Os livros, aparentemente de Direito, seguem o princípio de “tudo igual”, lembrando fotografias de juristas famosos. Há alguns retratos de familiares em molduras de madeira na mesa ao lado de algumas garrafas de cachaça representando marcas caras e raras produzidas pela família Coimbra no seu estado natal das Alagoas. Luzes suaves dão um tom de letargia à sala principal. O escritório e o corredor estão quase escuros.
Ouve-se o barulho de um automóvel em alta velocidade. Trata-se do berro agudo de um carro-esporte. Segue um estrondo. Momentos depois, ouve-se o som de pneus cantando o asfalto e, de novo, o berro do automóvel atingindo a sua velocidade máxima. Aos poucos, o barulho desaparece como se o carro tivesse ultrapassado um horizonte distante ou imaginário.
Da rua, aparece a figura de um jovem, Leopoldo Coimbra. Ele está vestido em traje esportivo, simples mas elegante, de calça bege e camisa polo do tipo que realça os músculos do peito e dos ombros. Leopoldo se aproxima da porta principal da casa. De forte ressaca, ele se endireita antes de entrar em casa. Ele abre e fecha a porta com força, fazendo um certo barulho. Depois de um momento de perplexidade, ele vai até o carrinho de bebidas. Ao começar a preparar um drinque ele de repente se curva em cima do carrinho. Ouvem-se os soluços de quem está chorando e, ao mesmo tempo, tentando se reprimir. Ele pega o carrinho com força até os copos e as garrafas começarem a tilintar. Na tentativa de controlar os soluços, ele emite um berro alto e agudo que lembra o som do carro esporte. Alguém acende uma luz no corredor. Leopoldo consegue se controlar. Já com o copo na mão, ele fica ereto, olhando para o corredor e adotando a postura tensa de quem espera por um adversário. Entra o Johnson, o mordomo da família Coimbra, de uniforme preto e sombrio.
LEOPOLDO: (Menos tenso) Oh, Johnson…é só você.
JOHNSON: É…só eu. (Um pouco irritado) O senhor precisa de alguma coisa?
LEOPOLDO: Não, Johnson. Eu não preciso de mais nada. (Bebendo um gole e falando para si mesmo) Nada, nada, nada.
JOHNSON: (Um pouco irônico) Então o senhor não vai se importar se eu sair para vistoriar os jardins. Estão cheios de pontas de cigarro e garrafas vazias de champanhe.
LEOPOLDO: Não. (Para si mesmo) Não me importo com mais nada.
JOHNSON: (Frio e objetivo) Muito bem, Sr. Leopoldo.
(Johnson anda na direção da porta principal da mansão, mas para no meio do caminho quando Leopoldo o chama.)
LEOPOLDO: Johnson, por favor, dê uma olhada no Aston Martin. Está na garagem. Ele pegou um pouco de sujeira.
JOHNSON: Sim, senhor. Algo mais?
(Leopoldo perde a pose de contestador, põe o copo no carrinho e esfrega o rosto com as duas mãos.)
JOHNSON: O senhor está bem, Leopoldo? Quer que eu chame alguém? O seu pai? A sua mãe?
LEOPOLDO: Não, Johnson, não precisa. (Para si mesmo) Não sou mais criança.
JOHNSON: Então, tá bom.
LEOPOLDO: (Mais calmo, pegando o copo) Johnson…você gosta de livros?
JOHNSON: (Um pouco perplexo) Gosto, sim. Já li todos os livros de Ian Fleming.
LEOPOLDO: I-ã…quem?
JOHNSON: Ian Fleming, autor dos romances de James Bond.
LEOPOLDO: Oh, James Bond…aquele do cinema, zero-zero-sete.
JOHNSON: O mesmo. Os livros são muito melhores do que os filmes.
LEOPOLDO: Eu leio livros de filosofia…papai não gosta…mamãe não entende….ninguém entende…o meu irmão tenta mas não consegue…
JOHNSON: Max é muito inteligente.
LEOPOLDO: Eu sei.
JOHNSON: (Sincero) O senhor também é muito inteligente.
LEOPOLDO: Obrigado, Johnson, mas não sou muito inteligente, não. Os estudantes de hoje vão para a universidade para estudar filosofia e não aprendem nada.
JOHNSON: Pensei que o senhor estudasse a engenharia.
LEOPOLDO: A gente não aprende nem uma coisa e nem a outra. Eu já li todos os livros de engenharia civil e todos os livros de Nietzsche. Não domino nem uma disciplina e nem a outra. Johnson, você acredita no amor?
JOHNSON: Infelizmente, nunca o encontrei.
LEOPOLDO: E ódio?
JOHNSON: Aí, sim.
LEOPOLDO: (Mostrando o seu drinque, como se fosse um exemplo) E amor e ódio, assim, tudo misturado?
JOHNSON: Como bom britânico, eu prefiro o meu escocês no estado puro.
LEOPOLDO: E já leu algum livro de filosofia?
JOHNSON: Como bom britânico, David Hume, e como bom carioca, que eu também sou, Nelson Rodrigues.
LEOPOLDO: E você aprendeu alguma coisa com eles?
JOHNSON: Nada!
LEOPOLDO: Nada?
JOHNSON: É isso que eles ensinam—Nada. E acreditam piamente neste Nada. Eu os admiro por isso. Leio um pouco de Hume toda noite. Ajuda a dormir. E já assisti a todas as peças do Nelson.
LEOPOLDO: Eu o admiro, Johnson.
(Leopoldo vira para o carrinho, sinalizando o fim da conversa mas, de repente, chama de novo a atenção do mordomo e levanta o copo.)
LEOPOLDO: E, Johnson…Feliz Ano Novo! 1964 vai ser um ano …não sei…diferente.
JOHNSON: Feliz Ano Novo pro senhor.
LEOPOLDO: (Levantando o copo para si mesmo) É…feliz.
(Johnson sai pela porta principal da casa. Leopoldo se curva de novo em cima do carrinho, esfregando o rosto com as mãos. Entra o Arno Ribamar de Coimbra do corredor. Está vestido de terno azul e gravata preta. Ele fuma um charuto e carrega uma pilha de jornais. Olha para o filho mais novo com certo desprezo.)
COIMBRA: O que é, filho? Se enjoou da festa de ontem à noite?
LEOPOLDO: (Irônico) Não, senhor! (Levantando o copo, um pouco bêbado) Estou festejando ainda! Feliz Ano Novo, Papai! Que 1964 seja um ano repleto de realizações!
COIMBRA: (Tirando o charuto da boca, irritado) Não é hora de estar bebendo! Vá pra cama!
LEOPOLDO: Com quem? A namorada foi embora.
COIMBRA: Chega! (Coimbra põe o charuto de novo na boca, pega o filho pelo ombro e começa a sacudir.) Chega disso! (Largando o ombro do Leopoldo e apontando para o carrinho) Põe esse copo de volta e vá pra cama!
(Leopoldo dá um passo para trás e levanta os braços num gesto que diz ‘tá bom’.)
LEOPOLDO: Não bebo mais.
(Leopoldo deixa o copo cair no chão.)
LEOPOLDO: Também não bebo menos.
(Rindo, Leopoldo vira e bate levemente no carrinho, causando um barulho e um certo desarranjo. Ele anda com passos largos e instáveis até a porta de casa, abrindo-a e fechando com violência. Já fora de casa, ele esfrega o rosto com as mãos de novo e chora enquanto anda, enfraquecido e desorientado, até fora do palco. Coimbra segue os passos do filho mais novo com os olhos, fazendo cara de nojo. Depois, ele entra no escritório. Lá, ele joga os jornais em cima da mesa e se senta, com certa pressa. Ele liga um abajur de mesa e começa a mexer com papéis. Entra, do corredor, o filho mais velho dos Coimbra, o Max. Como o irmão, Max está de traje esporte, mas a calça e a camisa polo são de cores mais escuras. Ele está bem arrumado, completamente sóbrio e anda com a autoconfiança de um atleta. Max espia o desarrumação do carrinho e o copo quebrado no chão. Depois, ele entra discretamente no escritório do pai.)
MAX: Feliz Ano Novo, Papai.
COIMBRA: (Tirando o charuto da boca e o passando pelo ar num gesto circular) Feliz…(Apontando) Senta, filho…
(Max senta-se numa poltrona confortável frente à mesa. Coimbra põe o charuto de novo na boca e mexe com papéis. Enquanto Max e Coimbra conversam no escritório, Lilian, esposa do senador e mãe de Max e Leopoldo, sai do corredor. Lilian tem um pouco mais de 40 anos mas aparenta bem menos. Preservou as linhas de uma mulher bonita e sensual. Está de vestido do tipo ‘tubo’, de uma peça só, azul-marinho com sutis linhas verticais de prata, manga curta e decote modesto com colar de pérolas. O vestido mostra as pernas até um pouco acima dos joelhos, considerado ousado na época. No cabelo, Lilian usa um penteado com volume estilo Maria Thereza Goulart. Ela segura uma revista de moda. Para na frente da porta do escritório, se inclinando para ouvir a conversa. Fica só dois ou três segundos e, fazendo um gesto de quem não gosta de fumaça de charuto, vai até a sala onde ela se senta numa das poltronas e começa a folhear a revista.)
COIMBRA: O que é que tem o seu irmão?
MAX: Não sei. Não o vi desde ontem. Ele saiu da festa.
COIMBRA: Vi ele agora. ‘Tava meio chutado…e de um mau humor…Vê isso pra mim, filho.
MAX: Falo com ele.
COIMBRA: (Finalmente olhando para o seu filho) Me diga uma coisa, Max. Quantos anos você tem?
MAX: Vinte e um, senhor.
COIMBRA: E com essa…essa…Betty, a sua namorada…quais são as suas intenções?
MAX: Bom, pai, eu gosto muito dela. Ela vem de uma família muito boa, tradicional, no melhor estilo—digamos—Carioca, do tipo ‘chegou com Cabral.’ Eu passo cada vez mais tempo com ela…Betty vem hoje para jantar, junto com Rosa.
COIMBRA: (Impaciente) Rosa? Quem é essa Rosa?
MAX: A nova namorada do Leopoldo. Não sei muito sobre ela ou a família. Acho que o pai veio do Nordeste ou do Norte ou…enfim, não sei…a mãe vem de Portugal mas não chegou com Cabral, não.
(Coimbra mostra o seu desdém sem falar nada além de ‘huh’)
COIMBRA: (Impaciente) Max, eu me preoccupo com vocês…(em pé, começa a andar pra lá e pra ca) Nós vivemos aqui, nesta cidade ‘maravilhosa’ (fazendo mímica das socialites amigas da sua mulher) do Rio de Janeiro, cercados de praias bonitas e mulheres bonitas e uma vidinha bonita de ricaço (se inclinado até ficar praticamente em cima do seu filho). Eu não nasci assim…você, sim, meu filho, você e o Leopoldo…mas eu não…Eu nasci de saco roxo…sabe…É verdade que o meu pai era rico–rico, sim–mas rico ao custo não só de muito suor e lágrimas mas rico de brigar…de briga de sangue, de agarrar a terra…de arranhar e dilacerar e tirar os olhos dos inimigos com unhas e dentes…brigar do tipo matar-ou-morrer…entendeu? Era assim, nas Alagoas dos tempos dele…e até do meu…Sabe o que é usineiro, meu filho?
MAX: Bom…hoje pode ser engenheiro, administrador de empresas, grande exportador.
COIMBRA: Acha? É isso que acha, seu administrador de empresas da Fundação Getúlio Vargas? Eu vou te dizer o que vem a ser usineiro, meu filho. Usineiro é Deus e o Diabo; para alguns Deus, para o resto o Diabo. Sabe o que é usineiro para mim (bate no peito).
MAX: (Um pouco irônico) Não imagino.
COIMBRA: O caralho…CA-RA-LHO…meu filho…você pretende casar com aquela branquela? Aquela…
MAX: Betty.
COIMBRA: Betty! Que nome francês, filho! É mulher para viado (sacudindo o charuto no rosto do filho)! Não faça isso, não, meu filho! Você tem 21 anos. Não é hora de casar, não; é hora de foder…esta me entendendo?…FODER…O que você faz nesta idade com mulher é foder…
MAX: (Recuando no primeiro instante mas depois falando com mais confiança) Eu sei, pai. Eu não falei em me casar, não. Eu não sei se eu vou casar ou não com Betty. Nem sei se eu vou me casar.
COIMBRA: Ainda bem, filho. (Se inclinando de novo) O ano de 1964 vai ser o ano da foda…vai ser um ano ótimo para o Brasil, para o nosso presidente suado e sofrido João Goulart das pradas e dos prostíbulos do (fazendo mímica do sotaque sulista) ‘Rio Grande do Sul,’ roxo, machão, sifilítico, ótimo para nós, a famíla Coimbra e, principalmente, para os seus machos. (Em tom de discurso no Senado) ‘Eu, na condição de Senador da República Federatva do Brasil representando o estado de açúcar e merda das Alagoas, decreto solenemente o ano de 1964 como ano oficial do CARALHO…caralho para todos…todo o poder aos CARALHOS… “Caralhos forever”’…Os caralhos vão ditar as regras para todos, tanto para os playboys e os viados quanto para as mulatas, as putas, as freiras e as barangas. Aos caralhos, tudo, aos outros nada!
(Coimbra senta-se de novo atrás da mesa. Está suado.)
COIMBRA: (Calmo) Fui claro?
MAX: O senhor foi muito claro, sim. (Para si mesmo) Como sempre. (Direto mas não agressivo) Agora posso falar alguma coisa?
COIMBRA: (Contundente) Não! (Um pouco mais ameno, mexendo com papéis para mostrar que está muito ocupado) Deixa pra depoís, meu filho.
MAX: (Um pouco irônico) Tá bom, pai. (Já em pé) Deixa pra depoís, deixa pra lá.
COIMBRA: (Fazendo círculos de novo com o charuto) Pode ir.
(No final do discurso de Coimbra, Leopoldo entra na sala de estar pela porta principal da casa. Está visivelmente exausto e deprimido. Com passos lentos, ele vai até o sofá e senta-se frente-a-frente com a mãe. Momentos depois, Max sai do escritório. Ele olha para a cena do irmão derrotado e da mãe exuberante e se aproxima até ficar atrás da cadeira do Leopoldo. Lilian, ao ver o filho mais novo sentado na sua frente, deixa cair a revista no colo de forma teatral.)
LILIAN: (Olhando para Leopoldo, horrorizada) O que é que houve com você, meu filho? Você está horrível!
(Max, agora em pé atrás da cadeira do Leopoldo, põe as suas mãos nos ombros do irmão e começa a fazer uma discreta massagem. Max olha para a mãe e, com a cabeça, faz um gesto na direção do escritório.)
MAX: O Senador está despachando com os familiares.
LILIAN: Minha vez.
(Lilian fica em pé e, ainda carregando a revista de moda, anda até o escritório. No meio do caminho, ela se vira e fala com Leopoldo.)
LILIAN: Tome banho, meu filho! (Para si mesma) Pelo amor de Deus!
(Lilian entra no escritório sem bater. Enquanto o Senador Coimbra conversa com a sua mulher, Max toma o lugar dela na cadeira frente ao Leopoldo. Max estende as mãos ao irmão, que as pega pelos pulsos. Em seguida, Leopoldo se curva e começa a chorar. O irmão mais velho deixa. Depois de um tempo, os dois se separam mas ficam sentados frente a frente, conversando de forma inaudível. A sala fica à meia luz. No escritório, Coimbra continua fumando o charuto e examinando papéis, ignorando a mulher. Com atitude ao mesmo tempo arrogante e sexy, Lilian se aproxima da mesa dele e coloca a revista bem na sua frente.)
LILIAN: BOM DIA, EXCELÊNCIA!
COIMBRA: (Olhando para ela, com charuto ainda na boca) Já desejei a você um bom dia e um bom ano novo. Agora chega. Se vai ser um bom dia e um bom ano já não depende mais de mim e do meu desejo e nem do seu.
LILIAN: MUITO OBRIGADA…EXCELÊNCIA!
(Lilian puxa a cadeira do marido pra trás. Como a cadeira tem rodas, ela faz a manobra com facilidade. Em seguida, ela senta-se na mesa, bem em cima da revista de moda, e agora puxa a cadeira pra frente. Ela fica com as mãos nos braços da cadeira de tal forma que o Coimbra fica preso. A posição obriga Lilian a ficar com as pernas abertas na frente do rosto do marido. Coimbra, por sua vez, se sente obrigado a tirar o charuto da boca. Ele fica com os braços no ar como se fosse um criminoso se rendendo a um policial.)
LILIAN: (Sedutora) Hoje, por ser o primeiro dia do ano, eu dispensei a calcinha.
COIMBRA: ‘Tou vendo. O que é que você quer, (fazendo mímica das socialites amigas da Lilian) querida?
LILIAN: (Fazendo carícia no cabelo do marido) Quero a ‘vossa… excelência’.
COIMBRA: Mas o que eu quero é fumar o meu charuto…
LILIAN: (Se inclinando, cara-a-cara) Eu também quero fumar o seu charuto. Quero cantar para você, como Marilyn Monroe com Kennedy…’Mister Presidente..’ (beijando o marido de forma delicada). Quero a excelência da vossa essência, Excelência.
COIMBRA: (Empurrando-a com a mão livre) Não é isso que você quer…por que tá vestida assim?
LILIAN: As namoradinhas vêm hoje.
COIMBRA: Putas.
LILIAN: Putas, nada.
COIMBRA: Putas, sim…Conheço você. O que é que você quer? Mais filhos? Dois já é o bastante. Por que querer mais?
LILIAN: (Mantendo a posição sedutora mas perdendo o espírito) Não quero mais filhos, não, Arno. Estou farta de filhos. Filho é uma chatice. Uma hora você está limpando a bunda dele, outra ele só quer saber de dinheiro e mulher e não quer mais nada com a mãe. São uns ingratos. O que eu quero (fazendo carícia de novo) é aventura. Viu? E você? O que quer? Não quer transar? É um belo dia (beijando-o de novo)…para transar…o primeiro dia de 1964…o primeiro dia do resto das nossas vidas.
COIMBRA: Não.
LILIAN: (Mais uma vez perdendo o espírito sedutor) ‘Não’ o quê? Seja claro.
COIMBRA: Não é isso que você quer, Lilian. Quer dinheiro? De novo?
LILIAN: Não! Não é isso que quero, não!
COIMBRA: Eu te dou um cheque! Quanto quer?
LILIAN: Nada. Você é cruel, Arno…cruel!
COIMBRA: Não sou cruel, não. Sou esperto, observador, inteligente. Me fale o valor! É só falar e te dou um cheque.
LILIAN: Será a primeira vez na vida que você paga uma mulher para não transar com ela.
COIMBRA: (Exagerado) ‘Querida’…’Queridão’…meu amorzinha…(agora contundente) O que eu quero, mulher, é trabalhar! Está vendo (usando o charuto para mostrar os papéis). Quero trabalhar! Não é hora de transar, não. (Apontando para o relógio) São duas da tarde. Mulher não entende. É o primeiro dia de 1964, sim, e esse 1964 representa—sabe o quê?–oportunidade. E é isso que eu quero. Quero oportunidade. Quero costurar uma aliança entre o PTB e os partidos menores, inclusive o meu, porque o PSD não presta para nada! Quero presentear o Jango. Quero a atenção dele, o tempo dele, o ouvido dele no lugar daqueles puxa-sacos idiotas que o cercam. Quero que EU seja o puxa-saco dele. Está entendendo? Este é o meu trabalho. É isso que eu faço. É isso que eu quero. Quero aventura, sim. Quero PODER. Quero ser MINISTRO e não apenas senador de um estado de merda! Está entendendo agora?
(Lilian pula da mesa, faz um ajuste no vestido e vai até a porta.)
LILIAN: Entendo, sim. Vossa excelência prefere foder os teus aliados em vez de tuas mulheres. Por isso, todos os políticos são viados.
COIMBRA: Exatamente. Vem um destes viadinhos amanhã aqui em casa e quero estar preparado.
LILIAN: Que a foda seja gostosa, viu?
(Lilian sai, batendo a porta)
COIMBRA: (Põe o charuto de novo na boca e volta a examinar papéis) Espero que sim. Muito obrigado.
(Lilian sai do escritório em direção da porta principal da casa. Agitada, ela vai folheando as páginas da revista até sair de casa. As luzes da sala se acendem.)
LILIAN: (Falando para os dois filhos mas sem olhar para eles) Esta vez, não.
(Max e Leopoldo olham a mãe até ela bater à porta. Lilian sai do palco. Momentos depois, as duas namoradas, Betty e Rosa, se aproximam da porta. Elas hesitam um pouco antes de tocar a campainha, mexendo com o vestido e o penteado. Betty é uma mulher alta e esbelta, com rosto bonito feito para capa de revista de moda. Ela usa um vestido quase igual ao da Lilian; a cor azul-marinho é menos escura e as listras de prata são mais espaçadas. O penteado também segue o padrão Maria Tereza Goulart, só que o cabelo da Betty é mais volumoso do que o da Lilian. Rosa é mais baixa do que a amiga. Ela esconde o corpo num vestido comprido de linha bege que lembra as moças inocentes do interior da Inglaterra de séculos passados, uma espécie de estilo pre-hippie. O cabelo dela, comprido e liso, esconde um pouco o rosto. Ela usa óculos com armação de metal. )
LEOPOLDO: (Deprimido mas sem chorar) Está tudo errado, Max…tá tudo errado comigo.
MAX: Não, Leo…não ‘ta não.
(Coimbra sai do escritório, olha para os dois filhos e entra no corredor sem dizer nada. O filhos nem sentem a presença dele )
LEOPOLDO: (Mais agressivo) Você não sabe!
MAX: Sei.
LEOPOLDO: Não. Não sabe, não, cara. Estou torto (batendo no peito com os dedos) …estou torto aqui dentro!
MAX: Não ‘ta não.
LEOPOLDO: Você não sabe o que eu fiz!
MAX: (Perplexo) Então…
LEOPOLDO: (Falando para si mesmo) O que é que eu fiz? Tudo que eu faço tá errado…Eu que sou errado. (Olhando para o irmão, batendo o peito de novo) O que está aqui dentro está torto…podre…não vale nada. Eu nasci assim–torto, aleijado, podre.
MAX: (Em pé, dominando de certa forma o irmão mais novo, contundente) Não tem NADA de errado com você, Leo! Está me entendendo? Você não fez NADA de errado! Tire essa ideia da cabeça! Somos irmãos! Unidos! Não fazemos nada de errado! Nem você e nem eu! Entendeu? Vamos viver! Não vamos lamentar! Tá bom? Vamos pra frente!
(Leopoldo olha para o irmão. Está um pouco mais calmo. Mostra até um pouco de esperança. Neste momento, a campainha toca. São as duas namoradas, Betty e Rosa, na porta. Os irmãos olham um para o outro. Max faz um cara que quer dizer ‘que hora inconveniente’.)
(Apagam-se as luzes)
–Fim da primeira cena-
Photo credit: Sumaré (Madison L. Pereira)