Todas as peças de teatro curtas deste “quarteto” lidam, direta ou indiretamente, com a política brasileira mas, a política da memória e imaginação, sem nomes próprios ou lugares específicos. É a política de perguntas, não de respostas. Quem pode interpretar os sentimentos e pensamentos do inescrutável mineiro? Qual é o real significado da verdade? Quem, ou o que, é responsável pela violência que borbulha abaixo da superfície plácida da maior parte da vida brasileira? O Quarteto de Orestes é composto de quatro peças de teatro curtas com um total de oito personagens. Veja uma das quatro peças.
A Anistia
Cenário. Uma sala nas dependências do Ministério da Justiça em Brasília. Abril de 1985. Brasil está com governo novo. Porém, o presidente eleito Tancredo Neves agoniza num hospital em São Paulo. Ninguém sabe como vai ser a Nova República. O palco está dividido em dois planos. No plano inferior, há apenas uma mesa e duas cadeiras. A mesa tem um único objeto—o remanescente de uma vela, já gasta e enrugada de cera. Uma luz berrante banha a mesa e as cadeiras. O resto é sombra. A sala apresenta o aspecto sinistro de um local para torturas reais e confissões falsas. Atrás do jogo de mesa e cadeiras há uma espécie de plataforma, constituindo um plano separado. Agora nas sombras, este plano superior será o cenário para manifestações de imaginação e memória.
Dois Guardas entram do lado esquerdo do palco, empurrando um Ex-Agente da Polícia Política. O Ex-Agente está de traje esportivo e está algemado. Um capuz cobre o seu rosto. Os Guardas são jovens, fortes e indiferentes. Um é branco e o outro negro. Eles usam uniformes. Sem cerimônia e com certo barulho, eles jogam o preso na cadeira à esquerda da mesa. Em seguida, prendem as algemas a uma espécie de fechadura na mesa, utilizando uma corrente. O jogo de corrente com algemas vai dar ao Ex-Agente certa liberdade para usar as mãos más não para conseguir ficar em pé. Um Alto Funcionário do Ministério da Justiça entra do lado direito do palco. Trata-se de um homem de uns 40 anos, alto e correto. Tem cabelo um pouco grisalho e usa cavanhaque. Está de terno e gravata. Ao mesmo tempo, entra pelo lado esquerdo um Contínuo, que busca imediatamente as sombras, ninguém percebendo a sua presença. O Contínuo é um homem de idade, magro, mal pago e pálido. Ele usa um uniforme bem simples e carrega sempre uma vassoura, que ele usa como instrumento de instrução ou ironia. Os Guardas sinalizam para o Alto Funcionário. Este faz um gesto mostrando o seu desejo de ver o rosto do preso. Um dos Guardas tira o capuz com certa violência. O Ex-Agente vira a cabeça de um lado para o outro, sofrendo visivelmente as dores de pescoço causadas pelo gesto do Guarda. Respira fundo para recuperar o fôlego depois de passar um tempo com a cabeça coberta. O Ex-Agente é um homem de aproximadamente 50 anos. Pelos traços do rosto e a cor da pele não dá para saber se é branco ou negro. Ele tem cabelo muito curto e um pouco grisalho. Fica sem expressão. O Contínuo olha para o rosto do Ex-Agente, o reconhecendo. Em seguida, o Contínuo grita, chamando a atenção de todos pela primeira vez.
CONTÍNUO: (Apontando com o cabo da vassoura para o Ex-Agente) Tchan, tchan, tchan, tchan…Olhem aí o NEGÃO!
(Todos olham não para o Ex-Agente mas para o Contínuo, que sorri. O Alto Funcionário sinaliza e os Guardas partem. Depois, o Alto Funcionário olha, bem irritado, para o ainda sorridente Contínuo. O Alto Funcionário se inclina um pouco e, de repente, bate os pés no chão como quem quer espantar baratas. O Contínuo faz um gesto cômico de horror e vira e sai pelo lado esquerdo do palco.)
ALTO FUNCIONÁRIO: (Ao Ex-Agente, curvado e imóvel na cadeira. O Ex-Agente mantém um silêncio sisudo. Só os seus olhos se movem, seguindo os passos do Alto Funcionário, que anda, muito devagar, pra lá e pra cá.) Peço desculpas em nome da Nova República pelo comportamento daquele servidor. Não foi correto, o gesto dele. É mero contínuo, velho, babaca…mas vou chamar a atenção dele. Pode ter certeza.
(O Alto Funcionário aguarda uma resposta do Ex-Agente, mas não a recebe. Tira um maço de cigarros do bolso do paletó e o oferece ao Ex-Agente, mas este fica imóvel. O Alto Funcionário põe o maço na mesa e se senta.)
ALTO FUNCIONÁRIO: (Olho a olho com o Ex-agente) Aqui é o Ministério da Justiça, o novo Ministério da Justiça. Agora, a justiça seja feita. Eu sei quem é você, mas você não sabe quem sou eu. Então, vou te dizer…Ouça bem, cara—EU SOU O SEU INIMIGO DE ONTEM. Não tenha dúvida. Mas eu não vou torturar você; não quero torturar ninguém, nunca, nunca mais. (Falando de forma ao mesmo tempo íntima e cada vez mais veemente) Acontece que eu conheço a sua ficha. Aliás, eu ESTUDEI a sua ficha. Conheço a sua ficha como se fosse a minha. E, sabe de uma coisa, quase que é a minha; impressionante, é quase igual…Carioca, advogado, divorciado com uma filha, essa última solta no mundo, quase que uma desconhecida porque o pai…o pai (batendo no próprio peito) tinha convicções, convicções muito fortes, a necessidade de mudar o mundo tão grande, tão grande que não deu tempo para mudar a vida de uma somente menininha e a mãe chata e deslocada…e tem mais…nós—quer dizer, eu e você–pegamos em armas, e na mesma época, só a forma que era diferente. Depois de ’64, você ingressou na Polícia Política e eu na guerrilha…só isso de diferença, quase nada…que coincidência, hein! Dois bons cariocas! E da Zona Norte! O Rio de Janeiro de verdade! Aquele que só o Nelson Rodrigues conhece, eu de Bonsucesso e você de Piedade…e nós dois carregando armas, em marcha para um país melhor, um mundo melhor! E danem-se aqueles que queriam se intrometer no nosso sonho, mesmo que sejam ex-mulheres ou ex-filhas ou ex-amigos ou ex-ínimigos…não era assim?
(O Ex-Agente ouve o discurso do Alto Funcionário sem emoção. Toca um telefone fora da sala e o Alto Funcionário se levanta, saindo pelo lado direito do palco.)
ALTO FUNCIONÁRIO: Vou buscar a sua ficha. E aí a gente conversa. (Entra o Contínuo do lado esquerdo do palco, fingindo varrer o chão. Ele começa a zumbir, sem muita convicção, o hino nacional para atrair a atenção do Ex-Agente. Durante o discurso do Contínuo, dois Guardas aparecem no plano superior do palco. Cada um carrega um poste de madeira de aproximadamente dois metros de altura. Trabalhando de forma lenta e mecânica, eles fincam os dois postes em buracos feitos para tal finalidade na plataforma. Os postes, então, ficam retos a uma distância de mais ou menos um metro um do outro. Depois de fincar os postes, os dois Guardas assumem as suas posições, ao lado de cada poste, como se fossem os guardiões dos seus segredos indescritíveis.)
CONTÍNUO: (Varrendo cada vez mais lentamente até parar ao lado da cadeira vazia. O Ex-Agente olha para o Contínuo com a mesma desconfiança que reservou para o Alto Funcionário. O Contínuo adota o tom de quem está muito ofendido.) Ó Negão, você não se lembra de mim? Todos aqueles anos…(se inclina até deixar o Ex-Agente constrangido) trabalhando juntos! Bons dias, aqueles! Agora, cá entre nós…A ditadura era MUITO melhor, não era? Fala a verdade. Ditadura traz estabilidade de emprego. No início alguns dançam—até em pau de arara—mas depois, aqueles que ficam, ficam por muitos anos…e anos…e anos…Agora eu…eu sou melhor ainda. Sabe por quê? Porque eu não sou ninguém. É ÓTIMO não ser ninguém! Imagine você ser invisível. Imagine o que você pode ver, e fazer, sendo, como eu, invisível. Eu sou contínuo…ou seja..eu CON-TIN-U-O…como Deus…eu sou antes de você e sou depois. Sacou? Eu dou continuidade a essa coisa toda. Sabe por quê? Porque eu controlo os arquivos! Quem controla os arquivos controla tudo…entrada, saída e destino. Eu controlo até o pre-destino. Os crentes acreditam numa coisa chamada de pre-destino. Sabia? Ditadura em país católico pode ser muito ruim, mas em pais crente é muito pior…tá todo mundo condenado com antecedência. É o tal do pre-destino. Agora, aqui no Brasil nós também temos o pre-destino. Nascido neguinho fica neguinho a vida inteira. Não é verdade? Não há creme de pele contra a condição, nem dinheiro, poder ou óculos escuros…ninguém vira neguinho, né? Porque ninguém quer. É neguinho a vida inteira, como você. É o pre-destino brasileiro. Pretinho. Negão. Sendo assim, eu sou o verdadeiro felizardo. Viu? Nem você, nem aquele chato de cavanhaque que anda aí. Logo, logo quando morre aquele que tá no hospital, o Tranquedo, esse chato de cavanhaque dança. Aí vem outro, e depois dança, e vem outro, etc. etc. É isso que eles chamam de–sabe—“democracia.” Essa é a democracia deles. Todos dançam independente da cor, raça ou convicção religiosa.
(O Alto Funcionário volta à cena, entrando pelo lado direito do palco. Ele carrega umas folhas de papel. Ao ver o Alto Funcionário, o Contínuo se afasta para o cantinho do palco. Ele observa a cena, mas ninguém presta atenção a ele. O Alto Funcionário joga os papéis na mesa. Se apoiando na mesma, ele se inclina de forma até ameaçadora em cima do Ex-Agente.)
ALTO FUNCIONÁRIO: (Em tom triunfal) A sua ficha! Com fotos e tudo!
(O Ex-Agente olha para o Alto Funcionário. Depois, ele baixa os olhos como quem se sente derrotado. Mas a verdadeira intenção dele é outra. Sem nenhum aviso, ele pula da cadeira, até onde a corrente permite, e, mesmo com as mãos algemadas, pega o Alto Funcionário pelos braços e começa a sacudi-lo.)
EX-AGENTE: (Gritando) Você não tem ficha porra nenhuma, seu safado, nojento, viado, muito menos a minha! Minha ficha é segredo…SEGREDO…Sacou, seu viado? Segredo de Estado…(Ele empurra o Alto Funcionário, que recua sem graça dois ou três passos, e começa a mexer com os papéis. Depois, ele aponta para o Alto Funcionário, com a mão cheia de papel amassado, como se pudesse ameaçar o inimigo com os documentos) Você não vai ver a minha ficha nunca. NUNCA! Ouviu? Você não é alto funcionário porra nenhuma. Você é verme…guerrilheiro nada…eu conheço a SUA ficha, caralho. Sacou? Sacou essa? Você é viadinho… safado…funcionário encarregado de porra nenhuma…
(O Alto Funcionário, agora livre do agitado Ex-Agente, sinaliza para os Guardas, que descem do palco superior e avançam em cima do Ex-Agente, que repete os libelos “viado, safado, caralho” até que um dos Guardas chegue para dar um tapa barulhento no rosto dele. Até o Contínuo se mostra um pouco abalado no silêncio que se segue.)
ALTO FUNCIONÁRIO: (Sem fôlego) Você esquece…você esquece…(Com dedo em riste apontado para o Ex-Agente)…que não é mais você quem dá as cartas…
(O Alto Funcionário sai da cena pelo lado direito do palco. Os Guardas também saem, logo assumindo de novo as suas posições ao lado dos pilares de madeira no plano superior do palco. O Contínuo se aproxima ao Ex-Agente.)
EX-AGENTE: Agora, sim, vão me torturar. Eu sabia.
CONTÍNUO: (Exagerado) Torturar? Você? Imagine! Na Nova República?
EX-AGENTE: Nova República porra nenhuma.
(Enquanto os dois conversam, os Guardas tiram um par de algemas do chão da plataforma, as colocando com certa cerimônia em ganchos nos dois pilares de madeira.)
CONTÍNUO: Agora você…VOCÊ…você era grande! Um mestre de tortura. Eu assistia. Nem sempre você percebeu, mas eu estava aí, sempre, observando, aprendendo. Você era o grande mestre do porão. Você inovou, desenvolveu técnicas novas, passou a sua sabedoria para os outros, especialmente os carrascos mais novos, os exagerados, nervosos como aqueles jogadores—sabe–que querem fazer gol no primeiro jogo da carreira de qualquer jeito…você os instruía, mostrava caminhos…era um mestre…um MESTRE…torturava sem deixar marca…sem o sujeito gritar…(demonstrando com o cabo da vassoura) você não fodia a vitima, você fazia amor…admirável!…passo a passo, dando um pouco de atenção, fazendo apenas uma sugestão das delícias por vir e, depois, dando um tempo para pensar…afinal, ’o melhor da festa é a antecipação’…e então, de repente, depois de muita atenção, muito esforço e muita técnica saía a confissão junto com aqueles suspiros…ahh, os suspiros!…(mudando o tom) às vezes os últimos, a bem da verdade.
EX-AGENTE: Você é um perfeito idiota.
CONTÍNUO: Muito obrigado! Mas, para mim, o idiota é você. Aquele outro, que se diz Alto Funcionário, nem se fala. Agora, vocês dois juntos! Que maravilha, hein! Dois bons Cariocas…um branco e o outro NEGÃO…um com perspectiva de ‘boooom sucesso’ (fazendo um gesto largo para mostrar como era boa a perspectiva do Alto Funcionário) e o outro pedindo ‘piedade.’ Bons companheiros! Grandes amigos! Caminhando… caminhando…’quem sabe faz a hora’ etc…braço-a-braço, os dois mosqueteiros! (mudando do irônico para um tom mais realista) Só que, no Brasil, não tem mosqueteiro…só tem NEGÃO…mas, negão para tudo! Especialmente para os trabalhos mais sujos. Então você saiu da Piedade e foi pro Centro. E trabalhou, trabalhou, trabalhou muito bem, especialmente depois de ’64. Virou advogado–aquele diploma barato de escola suburbana—e delegado! Delegado dos porões da ditadura. O porão do trabalho sujo. Que maravilha! Desceu a escada para subir na vida. Você podia deixar a Piedade pra trás, deixar a mulher chata, deixar a filha. Em determinado momento, você quase deixou de ser negro! Podia andar na praia de Copacabana—Ipanema ainda não; vamo’ guardar as devidas proporções—mas Copacabana sim, de sunga mínima para mostrar aquelas coxas trabalhadas, o pintinho dançando, o tanquinho, andar nas areias de Copacabana em pleno dia como se fosse milionário de jogo do bicho, de sunga pretinha e óculos escuros, igualzinho ao Costa e Silva, e com aquele olhar, o olhar de quem dá as cartas, de quem não quer nada exceto ordem e progresso. Um homem a serviço do PAÍS, um homem quase branco. Aí, sim, meu chapa, você quase deixou de ser o NEGÃO que é!
(Com gestos largos como se fosse apresentador de show de auditório, O Contínuo chama os dois Guardas, que descem rapidamente da plataforma. Os Guardas caem em cima do Ex-Agente.)
EX-AGENTE: (Gritando para os Guardas) Agora sim, seus safados, viados, traidores! Podem vir. Estou pronto. O que mais quero é apanhar de vocês, covardes!
(Um dos Guardas dá um tapa na boca do Ex-Agente enquanto o outro põe um par de óculos escuros no rosto dele. Em seguida, eles recuam, como pintores de parede admirando o bom trabalho. Entra o Alto Funcionário do lado direito do palco.)
ALTO FUNCIONÁRIO: (Falando calmamente para o Ex-Agente) Está vendo? Não estamos aqui para torturar ninguém.
CONTÍNUO: (Para o Alto Funcionário) Só brincadeira, chefe. (Apontando para o Ex-Agente). Ficou bonito, não ficou?
(Agora azedo, o Alto Funcionário sinaliza para os Guardas, que sobem de novo na plataforma. Eles assumem os seus postos, desta vez de forma mais formal do que antes. O Contínuo vai para o cantinho do palco. Com dificuldade por causa das algemas, o Ex-Agente tira os óculos, os jogando na mesa.)
ALTO FUNCIONÁRIO: (Se apoiando na mesa, mostrando documentos para o Ex-Agente) Chega de brincadeira.
EX-AGENTE: (Falando para si mesmo) Agora, sim, começou. (Enchendo o peito, calmo mas falando grosso para o Alto Funcionário) Estou pronto, seu viado! Te dou o peito. Viu? Te dou o caralho, seu viadinho…pode chupar…não é isso que você quer?
ALTO FUNCIONÁRIO: Não…não é isso…o que eu quero é a verdade.
EX-AGENTE: Te conto…não tem problema nenhum…te conto tudo…agora não faz diferença nenhuma…a guerra acabou…e vocês ganharam…estou aqui em função justamente disso. Vocês ganharam e agora querem a sua vingança. Querem brincar. Tá bom. Por isso eu te dou o meu peito a você, porque você é alto funcionário…ou o meu caralho, se preferir, seu alto viadinho…quer ver? (mesmo com os mãos atadas, começa a mexer com o cinto da calça como se fosse tirar o pênis para mostrá-lo ao Alto Funcionário).
ALTO FUNCIONÁRIO: Não…não é essa a ‘verdade’ que eu quero…não pretendo arrancar verdade nenhuma de você. Nem vou arrancar os seus olhos por vingança, nem os dentes e nem outra parte do seu corpo. Muito pelo contrário. Estou aqui para contar a verdade a você.
EX-AGENTE: Não precisa. Leio os jornais todo dia. Assisto o Jornal Nacional.
ALTO FUNCIONÁRIO: Mesmo assim, vou contar. Você acha que não vai doer?
EX-AGENTE: Não sei. Nunca tomei no cu. Como é que é, hein?
ALTO FUNCIONÁRIO: Dói, sim…dói pra caralho!
EX-AGENTE: Então, vai fundo, seu carrasco.
ALTO FUNCIONÁRIO: (Pegando os papéis) Em novembro de 1975, você interrogou um homem, branco, ex-estudante de direito de uns 25 anos com o codinome de Gouveia. Aplicou choque elétrico e o colocou em pau de arara. A tortura durou três dias. Gouveia não confessou nada. Em dezembro de 1975 você interrogou outro homem, esta vez na casa de 50 anos, ex-diplomata, pai de três, de codinome Vinícius. Usou choque elétrico uma só vez. Vinícius acabou confessando algumas bobagens de valor nenhum e morreu em seguida de ataque cardíaco.
EX-AGENTE: (A si mesmo) Era viado.
ALTO FUNCIONÁRIO: Em Janeiro de 1976 você interrogou uma mulher, de uns 18 ou 19 anos, de codinome Tânia, ex-estudante, mulata, guerrilheira e, um detalhe, canhota. Você usou todas as ‘técnicas’ até arrancar algumas informações de relevância duvidosa. Em seguida, a Tânia morreu, supostamente uma suicida, mas…
EX-AGENTE: (A si mesmo) Pretinha. Idiotinha.
ALTO FUNCIONÁRIO: (Mostrando um número grande de papéis) Tem muito mais.
EX-AGENTE: O mundo está muito melhor sem eles. O mundo seria muito melhor sem eu. E o mundo seria melhor ainda sem você, alto funcionário, idiota, burocrata, covarde, hipócrita, caralho!
ALTO FUNCIONÁRIO: Será? (Jogando os papéis na mesa) As minhas cartas são essas, com a exceção de uma…(Toca o telefone fora do palco)…ainda na manga. Com licença.
(O Alto Funcionário sai do palco pelo lado direito. O Contínuo avança para o centro do palco.)
CONTÍNUO: Aquele diplomata, eu me lembro bem. Sujeito todo nervoso. Bastava insinuar a tortura e ele se curvava diante de você. Ou seja, ele não representava desafio nenhum para o mestre. Mesmo assim, você inovou! Aí o sinal de um grande mestre, um gênio do ramo! Aquele cara tinha sido cônsul-geral em algum lugar. Aí você pegou um cabo de vassoura, igual a este, e aí…aí… (o Contínuo começa a insinuar a tortura usando a vassoura), e gritando tempo todo ‘põe no Consul!…põe no Consul!’ (Rindo, mas depois se apoiando na vassoura como se estivesse cansado) Bons tempos aqueles…
EX-AGENTE: Você continua sendo muito idiota.
(Na plataforma, os dois guardas começam a se mexer. Entra em cena, pelo fundo do palco, a figura de uma pessoa algemada. A pessoa usa um uniforme típico de prisioneiros e, aparentemente, tem cabelo curto. O uniforme é tão frouxo e tão simples que não dá para identificar a figura como homem ou mulher. Os guardas abrem um espaço e a figura sobe na plataforma.)
CONTÍNUO: E eu continuo lhe agradecendo. (Ele se curva diante do Ex-Agente) Grande mestre. A lista é comprida, sim. Eu me lembro. Além daquele diplomata bobo tinha um ex-lider comunista, velhinho, velhinho, que também não servia para nada. Tinham algumas mulheres, é claro, quase todas feinhas…O que que disse o Marx? ‘Se faz a revolução na rua porque não se faz na cama!’ Por que é que toda revolucionária tem que ser feia, hein? Mas tinha aquela única exceção … aquela moça chamada Tânia… Aí, sim…uma moça toda especial, né? Com 18 ou 19 aninhos…meio mulatinha…exótica…canhota…cheia de energia…contestadora…tinha jeito de até gostar de apanhar…gritava até ninguém aguentar…que desafio para o negão mestre, hein? Chamaram você para você dar aquele toque, aquele que só o mestre pode dar, aquele jeito de arrancar as confissões e as traições sem os gritos, de fazer a menininha sofrer só gemendo, como se fosse uma foda, beeeeem compridinha e gostosa, (fazendo mímica de ato sexual) fodendo, fodendo, bem tranquilo até…até o momento, o coito. Só que esta vez a foda não era só—digamos assim—metafórica. (Utilizando o cabo e os dedos da mão como se fosse um pênis se inserindo numa vagina) Fodeu mesmo, você todo nu e ela toda nua, lá na cela. Fodendo…fodendo…ela gemendo…gemendo…Que gostosa, hein!. Em pleno dia! E dentro do expediente! Olhem aí o NEGÃO…negão de Copacabana…Será que foi bom também para ela?
EX-AGENTE: Negão de lugar nenhum…negão pronto para apanhar…e só.
CONTÍNUO: (Com falsa simpatia) Não fale assim, chefe! Ninguém vai apanhar aqui hoje, não.
EX-AGENTE: Eu estou pronto. Sei que é o preço.
CONTÍNUO: Isso não. Decretaram anistia. Agora é tortura só nas quartas e sábados. Hoje é terça. É pena. Você ia gostar de apanhar. A tortura hoje é toda diferente…muito melhor do que na nossa época. Sabe por quê?
EX-AGENTE: Não faço ideia.
CONTÍNUO: (Chegando perto como se fosse para uma conversa íntima) Eu te digo numa palavra só—TEC-NO-LO-GIA. É isso. Somos, agora, da Esquerda. Os instrumentos e, mais importante, o know how da tortura, hoje em dia, vem do Leste da Europa e de Cuba.
EX-AGENTE: (Incrédulo) Cuba?
CONTÍNUO: É incrível, não é? Os Cubanos não querem nada, não fazem nada, não têm nada além de banana e carro velho americano…só têm tecnologia de ponta em duas matérias—charuto e instrumento de tortura. Ahhhh…como são bons…saborosos…compriiiiiidos…os instrumentos de tortura cubanos. É coisa para o apreciador, sabe? Pode até usar charuto como instrumento de tortura—‘o dobro do prazer,’ como dizem os comerciais de cigarro. Não é como antigamente. Sabe por qûe? Porque a Direita é mesquinha…MESQUINHA! Viu? O que é que a Cia deu pra nós em matéria de tortura? Ferro velho! Ferro velho da Segunda Guerra Mundial. Não tem mais esse negócio não. Tá sofisticado agora. E também democrático. Tem até mulher que tortura. É a igualdade de oportunidade. Tem uma menininha aqui que pega o cabelo dos presos—sabe—cabelo por cabelo (O Contínuo finge tirar os cabelos da própria cabeça). Ela vai tirando…um por um…até você ficar todo careca. É isso que, hoje em dia, é tortura. (Se aproximando do Ex-Agente) E você, que é craque? Teria condições de enfrentar a tortura moderninha? (Dando socos de brincadeira no ombro do Ex-Agente) Vamos! Fala, cara! Você aguenta?
EX-AGENTE: Aguento.
(O Ex-Agente começa a ficar agitado, fazendo barulho com as algemas. Depois, tenta ficar em pé e, não conseguindo, passa a rebolar os quadris, repetindo gestos obscenos contra a mesa.)
CONTÍNUO: (Agora andando pra lá e pra cá) Temos todo tipo de tortura agora, torturas novas…choque elétrico automatizado, por exemplo. Aguenta?
EX-AGENTE: Aguento, sim!
CONTÍNUO: Tortura psicológica. Por exemplo, ficar sem dormir por noites sem fim?
EX-AGENTE: Claro que sim!
CONTÍNUO: Ficar com a cabeça dentro da água até não poder respirar?
EX-AGENTE: Aguento, sim! Por que não?
CONTÍNUO: Pau de arara em sala gelada.
EX-AGENTE: Aguento!
CONTÍNUO: Marcas de charuto no corpo todo!
EX-AGENTE: Sim!
CONTÍNUO: Xingamentos e berros do carrasco?
EX-AGENTE: Não quer dizer nada!
CONTÍNUO: E se fosse de mulher torturadora?
(O Ex-Agente, repentinamente, fica sem gás. Ele senta na cadeira como se estivesse exausto.)
EX-AGENTE: Eu era casado…sabe?
CONTÍNUO: Bom…como você mesmo dizia: cada um tem o seu limite.
EX-AGENTE: Eu sei…só não sei qual o meu. Talvez seja este.
(Entra o Alto Funcionário com mais uma pasta cheia de documentos. Ele joga a pasta na mesa com tanta violência que papéis e fotos se espalham. Enquanto o Ex-Agente e o Alto Funcionário falam, os Guardas tiram as algemas da figura presa. Em seguida, eles prendem a vítima aos dois pilares pelos pulsos.)
EX-AGENTE: (Ao Contínuo) Aí vem o carrasco moderninho. (Ao Alto Funcionário) Estou pronto, seu safado! Pode começar!
(Na plataforma, um dos Guardas tira um chicote do cinto. Fazendo um barulho agudo e assustador, ele testa o instrumento, chicoteando o chão, várias vezes durante a cena.)
ALTO FUNCIONÁRIO: (Se aproximando do Ex-Agente) Gouveia, Vinícius, Tânia, tantos outros. O mundo agora é ‘melhor sem eles?’
EX-AGENTE: É. Disso tenho certeza.
ALTO FUNCIONÁRIO: E o Seu Manoel?
EX-AGENTE: Quem é?
ALTO FUNCIONÁRIO: Um morto desconhecido. Quer dizer, desconhecido pelo mundo, mas conhecido pela viúva, os dois filhos, os amigos e vizinhos…e você. Para você, ele não tinha outro nome, só Manoel. Não sobreviveu nem um dia nas suas mãos.
EX-AGENTE: E daí…não era o único assim.
ALTO FUNCIONÁRIO: Não era. Só que tem uma diferença. Manoel não tinha nada a ver com a guerrilha, nem com o Partidão, nem com nada e ninguém. O único crime dele era de receber o jornal A Voz Operária em casa porque ele era isso, um operário. O pessoal de vocês, os seus ‘investigadores’ idiotas e incompetentes, o confundiram com outro Manoel, um tal de Manoelzão do mesmo bairro com a mesma estatura e o mesmo bigode etc. etc. que era um líder sindical. Os investigadores idiotas, em vez de pegar o Manoelzão, pegaram o Manoelzinho…e entregaram para você. Você se lembra dele agora, não lembra? Eu sei que você lembra. Eu vejo pelos seus olhos. Como ele gemia; como ele protestava inocência; como ele chamava pela mulher e pelos filhos, até pela mãe; como ele berrava com o choque elétrico, como ele chorava depois até aquela crise de soluços, soluços sem fim, soluços que nem você e nem ninguém jamais ouviram. Está lembrado? Agora você entende, não entende? Você entende aquela crise, entende por que aquela crise era coisa única e sem precedentes. Você sabe agora por que aquele grito era o grito do final dos tempos, não sabe? Você sabe…é porque aquele grito era o grito dos inocentes!
EX-AGENTE: Inocente nada!
ALTO FUNCIONÁRIO: Inocente tudo!
EX-AGENTE: Ninguém é inocente.
ALTO FUNCIONÁRIO: Não faz diferença para você? O mundo é melhor sem Manoelzinho?
EX-AGENTE: Menos um idiota.
ALTO FUNCIONÁRIO: E a mulher e os filhos?
EX-AGENTE: Danem-se!
ALTO FUNCIONÁRIO: OK. Está bem. O Inferno para eles, então.
EX-AGENTE: Inferno nada! A viúva recebe pensão.
ALTO FUNCIONÁRIO: Na medida de exatamente um salário mínimo…infelizmente, é a mesma coisa.
EX-AGENTE: Você não tem prova nenhuma. Como você sabe que era inocente?
ALTO FUNCIONÁRIO: Bonito esse! Agora tem que provar que é inocente! A prova, neste caso, vem de vocês. O investigador-chefe, único razoavelmente inteligente da turma, estava doente naqueles dias. Quando voltou, descobriu o erro dos subordinados idiotas. Eu digo ‘razoavelmente inteligente’ porque ele tinha a ideia idiota—porém, para nós, feliz–de apresentar um relatório sobre o episódio, relatório agora na minha posse…como muitos outros.
EX-AGENTE: (Gritando) E daí, seu canalha! A mulher recebe! Recebe, sim! Recebe do Estado! Recebe! Nós que pagamos ela…todos nós!
(O Alto Funcionário aguarda para o ataque de nervos passar. Depois, fala com muita paciência. Na plataforma, o Guarda para de testar o chicote. Ele o segura na mão como se estivesse aguardando uma segunda ordem.)
ALTO FUNCIONÁRIO: Sim, todos nós pagamos…todos… E você? Que falta você faria no mundo? Abandonou a mulher e a filha e agora o mundo não precisa mais de carrascos ‘mestres.’
EX-AGENTE: Eu já disse. Sem eu, o mundo seria melhor, sim, a minha mulher e a minha filha também, sem dúvida. Acabe comigo. Aí, elas recebem.
ALTO FUNCIONÁRIO: Será? Você torturou homens, mulheres e até menores de idade.
EX-AGENTE: É o ofício do poder, como você vai saber logo logo. Eu fiz aquilo que eu tinha que fazer diante das circunstâncias, da mesma forma que você, agora, está fazendo. Eu os torturei, sim, como você, agora, está me torturando.
ALTO FUNCIONÁRIO: É diferente quando você faz para o seu próprio prazer.
EX-AGENTE: Como você está fazendo agora comigo?
ALTO FUNCIONÁRIO: Ninguém está torturando você.
EX-AGENTE: Não?
ALTO FUNCIONÁRIO: Mesmo querendo, não poderia. É a anistia…esqueceu? É como a chuva, que cai em cima de todos indiferentemente. A única tortura que posso empregar é essa, a verdade.
EX-AGENTE: A verdade não me atinge. O órgão que a recebe foi extirpado por especialistas. Ainda bem. A verdade pode causar câncer. Está provado. Quem vende verdade tem que colocar aviso—‘risco de câncer.’
ALTO FUNCIONÁRIO: É como aquele procedimento médico que corta o nervo que traz a dor ao corpo humano. Parece uma bênção. Não vai mais sentir dor nenhuma!
EX-AGENTE: Sou eu!
ALTO FUNCIONÁRIO: É! Só que, depois, você descobre que a dor é importante. A dor dá avisos importantes. Às vezes, você tem que passar pela dor para poder entender as coisas. Você sente as coisas pela dor.
EX-AGENTE: Eu não sinto NADA. Entendeu? E eu não quero sentir nada. Não sinto nada por todos aqueles homens e mulheres e menores de idade porque não sinto nada por mim, e nem nada por nada e ninguém.
ALTO FUNCIONÁRIO: Nem por Ana Cristina?
EX-AGENTE: Quem…?
(Pausa. Por um instante, o Ex-Agente parece confuso.)
ALTO FUNCIONÁRIO: Vamos voltar a um caso singular.
EX-AGENTE: Você que sabe.
ALTO FUNCIONÁRIO: É o caso da moça chamada Tânia.
(Enquanto o Alto Funcionário discute o caso Tânia, o Contínuo começa a se mexer, se aproximando ao Alto Funcionário pelas costas, mostrando um interesse cada vez mais cínico nos documentos apresentados pelo representante do governo.)
EX-AGENTE: O que é que tem?
ALTO FUNCIONÁRIO: Era uma moça muito atraente.
EX-AGENTE: E daí?
ALTO FUNCIONÁRIO: Presos daquela época, e até alguns colegas seus, testemunharam o fato de você ter mantido relações sexuais com a tal de Tânia.
EX-AGENTE: Ela estava pedindo.
ALTO FUNCIONÁRIO: Você fez algum tipo de promessa a ela?
EX-AGENTE: Não! Estava PEDINDO! Às vezes a mulher pede, não sabia? Ou isso não acontece em Bonsucesso?
ALTO FUNCIONÁRIO: Acontece…às vezes.
EX-AGENTE: E Paris? Acontece em Paris?
ALTO FUNCIONÁRIO: Também.
EX-AGENTE: Então. Aconteceu. E daí? O que é que tem? Vai contra as regras? Vai! Violei as regras. Violei a moça…e daí? Era GUERRA, viu? GUERRA! As regras são outras numa guerra. Tinha uma regra em Paris—o Paris dos exilados–e outra nos porões do Rio de Janeiro porque aqui no Brasil nós estávamos em GUERRA enquanto vocês, exilados confortáveis, acomodados, safados, caralhos, em Paris estavam vivendo uma vida pacata, pacífica e abastada, acolhendo os aplausos daquele anão com cara de sapo—o Sartre–e dos outros intelectuais esquerdistas, também safados e idiotas, naqueles cafés chiques. Para vocês o sexo era LIVRE e gostoso. Para nós, aqui nos porões da guerra, era custoso, sujo e nojento…igual a mim, nojento. NOJENTO! Sei que sou nojento. Você aguenta? Aguenta dividir o espaço com um nojento?
ALTO FUNCIONÁRIO: Aguento.
EX-AGENTE: Ahhh, muito obrigado, seu alto funcionário…eu não queria sujar os seus sapatos.
ALTO FUNCIONÁRIO: Você não sujou coisa nenhuma de ninguém; você só sujou a bandeira do Brasil.
EX-AGENTE: Bandeira nada! (Batendo no próprio peito) Salvei essa bandeira! Salvei! Salvei enquanto você bebia champanhe e chupava caralho em Paris. Eu a salvei. Salvei no nome da PÁTRIA! Salvei para que idiotas como você pudessem pontificar sobre a bandeira e a moralidade. Eu a SALVEI, sim!
ALTO FUNCIONÁRIO: Fodendo uma moça numa cela de prisão?
EX-AGENTE: Sim! Coloquei o meu pé sujo na beira do vaso sujo para poder penetrar a sua boceta suja…
ALTO FUNCIONÁRIO: E foi bom para ela?
EX-AGENTE: FODA-SE! Foda-se seu caralho, viado, nojento! Que diferença faz para você? Que diferença faz para o mundo se uma guerrilheira suja e idiota gostou ou não?
ALTO FUNCIONÁRIO: Pra mim, não faz diferença nenhuma. A questão é se faz diferença para você.
EX-AGENTE: Não! Ela partiu. Não faz parte de coisa nenhuma agora. Acabou. Caput. Graças a Deus. Menos uma.
ALTO FUNCIONÁRIO: Sim, menos uma.
EX-AGENTE: Cortamos pela raiz.
ALTO FUNCIONÁRIO: É verdade. Por aquela raiz não cresce mais nada.
(O Alto Funcionário pega uma pasta cheia de fotos. Enquanto fala, ele mostra as fotos uma por uma. Com a exposição de cada foto, o Contínuo avança mais um passo até ficar imediatamente atrás do Alto Funcionário, examinando as fotos com um olho clínico, sem que o Alto Funcionário o perceba.)
ALTO FUNCIONÁRIO: Vamos falar agora de uma moça chamada Ana Cristina.
EX-AGENTE: O que é que tem?
ALTO FUNCIONÁRIO: Ana Cristina era o nome da sua filha, não era? Aqui uma foto dela aos dois aninhos. (Ele mostra a foto) Você tá aí, não tá? Você estava ainda morando com a mulher e a filha, ou seja, você se lembra da sua filha nesta idade, não lembra?
(O Ex-Agente se mostra indiferente.)
EX-AGENTE: (Sem emoção) Como você conseguiu essas fotos?
ALTO FUNCIONÁRIO: Da sua ex-mulher.
EX-AGENTE: Está me mostrando por quê?
ALTO FUNCIONÁRIO: Diversão! Aqui tem outra. Agora a Ana Cristina tem cinco aninhos. Tá vendo? Dois detalhes. Ela tem um pequeno sinal na face esquerda do rosto, igual ao da Elizabeth Taylor. Tá vendo? Outro detalhe. Ela é canhota. Está sentada numa cadeira de escolinha especial, aquela que é só para os canhotos. Cinco aninhos. Talvez seja a última época que você lembra dela—uma mocinha magrela, de traços delicados, mulata, sorridente…e canhota com sinal no rosto…depois, você foi embora e nunca mais deu bola, nunca mais viu a sua filha ou teve notícia dela. Não é verdade?
(O Ex-Agente fica um pouco confuso. Na plataforma, os Guardas começam a mexer com a roupa da vitima presa entre os dois pilares.)
ALTO FUNCIONÁRIO: (Insistente mais não agressivo) É verdade? Não mais viu a sua filha? Fala.
EX-AGENTE: Não. Não vi mais. Nunca mais.
ALTO FUNCIONÁRIO: Aqui outra foto. Agora tem uns 10 anos. É tudo a mesma coisa só que cinco anos mais tarde—uma moça bonitinha, magra e sorridente…e canhota…está vendo? Ela segura a caneta com a mão esquerda…é a moça com sinal no rosto igual ao da Cleópatra do cinema…Tá vendo?
(O Ex-Agente começa a ficar agitado. O Alto Funcionário fala mais rápido num tom cada vez mais insistente e diabólico.)
ALTO FUNCIONÁRIO: …e aqui outra…aos 13 anos…dá pra ver? Tá mostrando o mesmo rosto…esse rosto é familiar, não é? É o mesmo rosto das fotos anteriores…são todas fotos de escola…(jogando as fotos uma por uma como se fossem cartas de um baralho)…aqui aos 15…agora aos 16, 17…tudo igual, só que um aninho mais velho. As pessoas não mudam tanto, não é verdade? Agora, essas fotos também são iguais a uma outra foto…uma foto que está arquivada na sua cabeça, não é verdade? Porque uma pessoa, aos 17, não é muito diferente aos 19 ou 20, né?
(O Ex-Agente fica mais agitado, tentando se erguer, lutando contra a corrente que o prende à cadeira. Na plataforma, os Guardas agem agora com rapidez, tirando a blusa da sua vítima. A vítima fica nua de cintura para cima. Fica evidente, pela primeira vez, que trata-se de uma mulher de uns 20 anos. O Guarda começa a chicotear a vitima pelas costas. Ela geme com cada golpe. )
ALTO FUNCIONÁRIO: (Mais agressivo) Agora outra, só que agora aos 19 anos, uma foto tirada pelos amigos…amigos perigosos…amizades que você, como bom pai, não ia permitir nunca. Ela não é mais Ana Cristina. Agora é Tânia, usa roupa de camuflagem e carrega arma; mas o rosto é o mesmo, o sinal é igual e ela segura a arma…está vendo?…COM A MÃO ESQUERA!…porque ela é CANHOTA!
(O Ex-Agente tenta segurar o Alto Funcionário mas, desta vez, o acusador evita as mãos agitadas do adversário. Em seguida, o Ex-Agente bate com as mãos na mesa.)
ALTO FUNCIONÁRIO: E aqui tem mais uma foto….(Ele levanta a foto. O Ex-Agente tenta tirá-la da sua mão mas não consegue enquanto o Alto Funcionário brinca de esconde-esconde com o retrato.) Essa foto VOCÊS tiraram, depois de prender a tal de Tânia e os companheiros de aparelho. Ela não sorri mais, mas o rosto é o mesmo, o sinal é o mesmo, o cabelo é o mesmo. Essa é a moça que VOCÊ conheceu…e conheceu muito bem no porão…e aqui a última...
(O Ex-Agente parece desistir de lutar contra a corrente que o segura na mesa e a série de fotos incriminadoras. Ele recua para a cadeira, quase exausto.)
ALTO FUNCIONÁRIO: A última foto…(Ele se inclina para mostrar a foto) Essa também é de vocês…É a foto já no IML…a foto do corpo da menina…curioso até, como ela ficou quase sorrindo, mesmo morta. Está sorrindo para você. Está com os olhos meio abertos. Está olhando para você. Essa, você pode ficar. (Ele joga a foto no colo do Ex-Agente) É sua. Pegue de lembrança…lembrança de filha pra pai!
(O Ex-Agente fica cabisbaixo. Ele não ensaia nenhuma reação. Na plataforma, a vítima para de lutar contra as algemas que a prendem aos dois pilares. Com o corpo mole, ela também fica cabisbaixa. O Guarda joga o chicote no chão e aproxima-se da vitima. Uma rápida examinação dos olhos mostra que ela está morta.)
ALTO FUNCIONÁRIO: (Recuando um pouco da mesa e falando de forma casual) É por isso que eu te perguntei: foi bom para ela?
(O Ex-Agente reage violentamente, ficando meio em pé e ensaiando uma série de ofensas do tipo “canalha, escroto, vagabundo,” mas a corrente mais uma vez o prende à mesa, desta vez machucando as suas mãos. Depois da reação violenta ele parece perder toda a vontade de falar e recua de novo na cadeira, olhando para o chão. O Contínuo fica ao lado do Alto Funcionário, que o percebe pela primeira vez na cena. O Alto Funcionário não reage à presença do Contínuo. )
CONTÍNUO: (Olhando para o Alto Funcionário) E você falou que não ia torturá-lo!
(Blackout de todas as luzes no palco exceto uma luz spot que focaliza as três figuras na Plataforma superior do palco. Os dois Guardas tiram o corpo da sua vítima dos dois pilares com muito cuidado, lembrando as pinturas medievais da Descida da Cruz. Enquanto os Guardas carregam o corpo para fora do palco, as luzes começam a iluminar de novo o palco principal. O Alto Funcionário continua em pé do lado direito da mesa. Agora, ele fuma um cigarro. O Contínuo está atrás da mesa. Ele segura a corrente que acabou de tirar das mãos do Ex-Agente. Este último está de fisionomia e comportamento mudados. Não está mais de cabeça baixa. Ele fica ereto na cadeira, olhando o espaço como se estivesse ainda no comando do porão e todos os seus segredos. Ele fuma um cigarro, saboreando a recém conquistada liberdade das mãos.)
ALTO FUNCIONÁRIO: Você está livre. Pode ir. Não vai ser condenado a coisa alguma (falando baixo, como se fosse sobre um assunto proibido)…mesmo sendo autor de crimes abomináveis…A anistia é ampla e irrestrita. Não sabia? Vai embora.
(Pausa. O Ex-Agente fuma, olhando primeiro para o Contínuo e depois para o Alto Funcionário)
EX-AGENTE: Eu fico pensando…sabe…eu fico pensando numa coisa.
(O Ex-Agente aguarda uma pergunta que não vem.)
EX-AGENTE: Por que um funcionário tal alto como o Senhor ficou incumbido de entrevistar um ex-agente tão baixo como eu? Eu digo ‘baixo’ em todos os sentidos porque eu sou a escória do mundo, não sou? É uma perplexidade. Especialmente dado ao fato de que tal entrevista não vai resultar em acusação ou ação de absolutamente tipo nenhum. Pode me explicar isso?
ALTO FUNCIONÁRIO: Não.
EX-AGENTE: Por que? Porque não pode ou não quer?
ALTO FUNCIONÁRIO: Porque eu não devo explicação nenhuma a você.
EX-AGENTE: Entendi. Como eu sou torturador, vagabundo, cafajeste, escroto e tudo mais você não me deve nada, nem uma satisfação. E os direitos humanos, hein? Não é pra todos? Escroto não tem direitos humanos, não?
ALTO FUNCIONÁRIO: Você tem, tanto que você está livre para sair daqui.
EX-AGENTE: Mas eu não quero sair d’aqui. O que eu quero é uma explicação! Quero saber por que! Por que eu? Quero saber como. Como você adquiriu aquelas fotos? Como você sabia sobre a vida da tal de Tânia, que você alega ser a minha filha? Não se trata de um direito humano? Querer saber? Querer saber por quê? Querer saber como?
(O Alto Funcionário adota a postura de quem não pretende dar uma satisfação.)
EX-AGENTE: (Com dedo em riste) Você também é escroto! Canalha! E torturador! Só que você não admite! Você não tortura com a dor física…tortura com papel, com mandado de segurança, com intimação, com burocracia. É a guerra psicológica. (Diabólico) Agora eu sei por que você me escolheu. Sabe como? Porque eu conheço a SUA ficha! E a sua ficha não tem nada de limpo, não. Tá suja…SUJA…igual a você, seu vagabundo, burocrata, canalha! Quer saber? Quer saber da sua ficha, seu escroto? Eu te conto…eu te conto tudo! Eu conto pra todo mudo!
ALTO FUNCIONÁRIO: Não. (Pausa) Eu mesmo conto.
CONTÍNUO: Ainda bem.
ALTO FUNCIONÁRIO: Eu conhecia a Tânia. Eu a conhecia muito bem. Eu compartilhei o aparelho com ela e com alguns outros durante os dias mais intensos e marcantes da minha vida. Eu compartilhei tudo isso com ela…e mais…Agora, eu digo ‘tudo’ mas não era tudo. Eu compartilhei tudo menos uma coisa—o desfecho. Em dado momento, fiquei incumbido de comprar cigarro para a turma. Eu saí…e nunca mais voltei. Foi o dia da invasão do aparelho (apontando para o Ex-Agente) por parte dos seus jagunços. Posso dizer que, nesta ocasião, eles trabalharam de forma até muito eficiente. Prenderam todo mundo, menos eu. Eu vi a ação de longe e fiquei na minha. (Falando com intensidade) E eu não passo nem um dia da minha vida MALDITA sem pensar naquele dia MALDITO, sem pensar naquelas pessoas que eu deixei pra trás, sem pensar no destino MALDITO delas, sem pensar no porão—este porão MALDITO—e as mãos MALDITAS, sujas de sangue, de homens como você. É POR ISSO que eu identifiquei VOCÊ, e especificamente VOCÊ, e trouxe VOCÊ pra cá para VOCÊ ver e saber e entender o que VOCÊ fez e com QUEM você o fez. Fui eu que encomendei tudo isso, sim. Fui eu que falei com a mãe da Tânia. Fui eu que a convenceu de passar o álbum de fotos. Fui eu que tirei a foto da Tânia de camuflagem e arma. Fui eu! E com muito orgulho! Porque, sem querer e sem saber, aquela arma era arma para derrubar VOCÊ e tudo que VOCÊ representa. Eu tenho muita vergonha…eu sinto a vergonha todo dia…eu durmo com a vergonha…eu sonho com ela…eu acordo com ela na minha garganta…às vezes ela me tira o fôlego…às vezes ela enche a minha cabeça…mas daquela foto eu não tenho vergonha nenhuma. Eu tenho só OR-GUL-HO! Porque com aquela foto eu derrubei você…eu e a Tânia, mesmo depois da morte…nós conseguimos tirar o Diabo da face da terra e enterrá-lo de volta ao Inferno!
(O Ex-Agente ouve o discurso do Alto Funcionário com muita calma, sorrindo levemente e fumando o seu cigarro)
EX-AGENTE: Inferno é você e o seu tipo…convencido…medíocre.
CONTÍNUO: (Falando para o Ex-Agente) Você realmente conheceu a ficha dele?
EX-AGENTE: Não. Foi mentira para tirar a verdade da boca dele.
CONTÍNUO: (Falando para a plateia) Esse que é mestre…mestre! (Falando para o Alto Funcionário) Você tem muito o que aprender, viu?
EX-AGENTE: (Falando para o Alto Funcionário) Você saiu pra comprar cigarro? Que sorte, hein.
ALTO FUNCIONÁRIO: O cigarro mata mas às vezes pode salvar a sua vida.
EX-AGENTE: Isso faz de você um grande de um canalha porque as pessoas vão dizer que foi você que deu sinal para a invasão do aparelho.
ALTO FUNCIONÁRIO: É um dos motivos da minha vergonha…nem sempre consigo derrubar essa tese. Só há uma coisa a fazer.
EX-AGENTE: (Com muito cinismo) Não há nada que você possa fazer.
ALTO FUNCIONÁRIO: Eu posso viver…Eu posso carregar essa culpa…carregar a desconfiança das pessoas…superar o passado e a dor…viver…tocar a vida…mudar as coisas e as pessoas, inclusive eu mesmo…Viver! Sabe o que é? Você consegue?
EX-AGENTE: Eu posso viver muito bem.
ALTO FUNCIONÁRIO: Então, que viva!
(O Alto Funcionário aponta para um espaço nos fundos do palco onde um dos Guardas fica do lado de uma porta. O Guarda começa a abrir a porta e percebe-se uma luz forte no outro lado. O Guarda deixa a porta entreaberta para não se expor à intensidade da luz. O Ex-Agente se levanta da cadeira e caminha na direção da porta. No meio do caminho ele se vira e fala com o Alto Funcionário.)
EX-AGENTE: É tudo mentira! A tal de Tânia…e tudo mais…MENTIRA! Eu sei.
ALTO FUNCIONÁRIO: Da mesma forma que ‘conheceu’ a minha ficha?
EX-AGENTE: Escroto! Mentiroso! Eu sei muito mais do que você imagina! Sei tudo!
(O Contínuo faz mímica da última fala do Ex-Agente, batendo no próprio peito ao formar silenciosamente as últimas duas palavras—‘Sei tudo!’ O Alto Funcionário aponta de novo para a porta. O Ex-Agente caminha na sua direção. O Guarda abre a porta. Uma luz cegante atinge o Ex-Agente que levanta a mão para proteger os seus olhos.)
(Apagam-se todas as luzes de forma repentina.)
-Fim da peça-
Photo credit: Bandeirantes, Liane Hilgendorff